segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Lesch-Nyhan: Um erro no código - O que pode uma desordem rara nos dizer sobre o comportamento humano?

Richard Preston, The New Yorker


Tradução: Marcus Vinícius F. de Garcia
Um dia, em setembro de 1962, uma mulher que aqui será chamada de Deborah Mörlen apareceu na sala de emergência pediátrica do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, carregando seu filho de quatro anos e meio, Matthew. Ele era espástico, e não podia andar ou sentar-se. Ainda bebê, ele tinha sido diagnosticado como tendo paralisia cerebral e retardo de desenvolvimento. A sala de emergência estava no Harriet Lane Home para Crianças Inválidas, um edifício de tijolo antigo no centro do complexo da Universidade Johns Hopkins, onde uma residente de pediatria chamada Nancy Esterly viu Matthew. Ele tinha a urina de cor estranha, disse  a Sra. Mörlen à Dr. Esterly, "e areia em sua fralda." Esterly retirou a fralda do menino. Estava manchada de um laranja profundo, brilhante, com uma coloração rosada. Ela tocou o pano e o sentiu áspero. Não tinha idéia do que era aquilo, exceto que o rosa parecia ser sangue. Ela soube através da Sra. Mörlen que Matthew tinha um irmão mais velho, Harold, que também era espástico e tinha retardo mental. Harold estava vivendo no Rosewood State Hospital. uma instituição para crianças com deficiência, fora de Baltimore, enquanto Matthew vivia em casa.

Uma vez que ambos os irmãos pareciam ter a mesma condição, Esterly acreditou ser provável que eles tivessem uma doença genética, ainda que não fosse uma que ela já tivesse visto ou ouvido falar. Esterly observou também que Matthew estava usando luvas, apesar de ser um dia quente. Ela admitiu o menino no hospital.

Esterly tomou uma amostra de urina de Matthew, e, tanto ela quanto um estagiário a examinaram com um microscópio. Eles viram que a amostra estava cheia de cristais. Eram lindos, tão claros como o vidro e pareciam feixes de agulhas ou fogos de artifício explodindo. Eram afiados, e ficou claro que estavam rasgando o trato urinário do menino, provocando sangramento. Esterly e o estagiário se debruçaram sobre fotografias de cristais em um livro de medicina. O estagiário perguntou se os cristais poderiam ser ácido úrico, um resíduo excretado pelos rins, mas cistina, um aminoácido que pode formar pedras nos rins, parecia o candidato mais provável. Esterly precisava de uma confirmação de diagnóstico, então levou ao andar de cima a amostra, onde William L. Nyhan, pediatra e cientista pesquisador, tinha um laboratório. Bill Nyhan era o guru do metabolismo", Esterly me disse.

Nyhan, que estava então em seus trinta anos, vinha estudando como células cancerosas metabolizam aminoácidos, em uma tentativa de encontrar maneiras de curar o câncer em crianças. "Foi um dos meus projetos impossíveis", disse-me recentemente. Nyhan é agora um professor de pediatria da Universidade da Califórnia, na San Diego School of Medicine. "Eu adoro trabalhar com crianças, mas lidar com o câncer pediátrico era depressivo, triste, e, na verdade, enlouquecedor”, disse ele.

Nyhan realizou alguns testes na urina de Matthew, usando um equipamento que ele havia projetado. Os cristais não eram cistina, nem qualquer tipo de aminoácido. Comprovou-se serem ácido úrico. Uma alta concentração de ácido úrico no sangue de uma pessoa pode levar à gota, uma doença dolorosa na qual cristais crescem nas articulações e extremidades, principalmente no dedão do pé. A gota é conhecida desde os tempos de Hipócrates, e ocorre principalmente em homens mais velhos. No entanto, o paciente aqui era um garotinho. Nyhan tinha um estudante de medicina chamado Michael Lesch trabalhando em seu laboratório, e juntos eles foram ao andar de baixo.

Matthew estava em uma cama em uma enfermaria aberta no segundo andar do Harriet Lane Home. Ele era um ponto de energia na ala, uma criança de olhos brilhantes com um corpo que parecia fora de controle. A equipe havia amarrado os braços e as pernas à armação da cama com tiras de pano branco para evitar que ele se debatesse, e tinham enrolado suas mãos em muitas camadas de gaze; de modo que pareciam clavas brancas. Enfermeiros rondavam em torno do garoto. "Ele sabia que eu era um médico e sabia onde estava. Ele estava alerta", diz Nyhan. Matthew cumprimentou Lesch e Nyhan de uma forma amigável, mas seu discurso foi quase ininteligível: tinha disartria, incapacidade de controlar os músculos que produzem a fala. Eles observaram cicatrizes e feridas abertas ao redor da boca.

Eles inspecionaram os pés de Matthew. Nenhum sinal de gota. Então, os braços e pernas do menino foram liberados, e Lesch e Nyhan assistiram a um complexo padrão de movimentos rígidos e involuntários, uma condição chamada distonia. Nyhan desembrulhou e tirou as gazes das mãos do menino.

Matthew olhou assustado. Pediu a Nyhan para parar, e então começou a chorar. Quando a última camada foi retirada, eles viram que as extremidades de vários dedos do garoto estavam faltando. Matthew começou a gritar e enfiou a mão na boca. Com uma sensação de choque, Nyhan percebeu que o menino tinha arrancado com mordidas partes de seus dedos. Parecia também ter arrancado com modidas pedaços de seus lábios.

"O garoto realmente me surpreendeu", disse Nyhan. "No momento em que eu vi, soube que aquela era uma síndrome, e que, de alguma forma, todas aquelas coisas que nós estávamos vendo eram relacionadas".

Lesch e Nyhan começaram a fazer visitas regulares à enfermaria. Por vezes, Matthew chegaria a arrancar os óculos de Nyhan e arremessá-los longe. Ele tinha um arremesso poderoso, aparentemente perfeitamente controlado, e parecia mal-intencionado. "Desculpe! Sinto muito!", Matthew diria a Nyhan, enquanto este ia buscar seus óculos.

Os médicos convenceram a Sra. Mörlen a trazer seu filho mais velho para o hospital. Harold, descobriu-se, mordia os dedos ainda mais severamente do que Matthew, e tinha literalmente mastigado seu lábio inferior. Ambos os meninos ficavam aterrorizados ao ver as próprias mãos e gritavam por socorro, ainda que as estivessem mordendo. As pernas dos rapazes ficavam em posição de tesoura, e eles tendiam a arremessar um braço em uma direção e a perna na direção oposta, como um esgrimista., Os médicos descobriram que os irmãos Mörlen tinham várias vezes mais ácido úrico no sangue do que crianças normais.
Lesch e Nyhan visitaram a casa da Sra. Mörlen, uma casa geminada num bairro de classe operária em East Baltimore, onde Matthew vivia com a mãe e a avó. "Ele era um membro bem aceito em sua pequena família, e mãe e avó eram muito tranquilas com relação à condição dos garotos", diz Nyhan. As mulheres tinham planejado uma engenhoca para prevenir que Matthew mordesse as mãos. Era um cabo de vassoura acolchoado que elas colocavam sobre os ombros do garoto, amarrarando seus braços como um espantalho. A família chamou-o de “Stringly Jack". Matthew frequentemente solicitava usar essa contenção.

Lesch e Nyhan também descobriram que gostavam dos irmãos Mörlen. Lesch, que agora é presidente do Departamento de Medicina no St. Luke's-Roosevelt Hospital, em Nova York, disse: "Matthew e Harold eram realmente crianças envolventes. Eu gostava de estar por perto deles."

Dois anos após conhecerem Matthew Mörlen, Lesch e Nyhan publicaram o primeiro trabalho que descrevia a doença, a qual veio a ser chamada de síndrome de Lesch-Nyhan. Quase imediatamente, médicos começaram a enviar pacientes para Nyhan. Poquíssimos médicos já tinham alguma vez visto alguma pessoa com a Síndrome de Lesch-Nyhan, e meninos com a doença foram, e são, muitas vezes diagnosticados como tendo paralisia cerebral (meninas virtualmente não têm a síndrome). Nyhan descobriu um número considerável de meninos com Lesch-Nyhan enquanto visitava instituições do Estado para pessoas deficientes. Quando lhe perguntei quanto tempo ele levava para diagnosticar um caso, ele disse: "Segundos". E continuou: "Você anda em um quarto grande, e você está olhando para um mar de rostos sem expressão. De repente, você percebe o garoto olhando para você. Ele está muito alerta com a sua presença. Relaciona-se prontamente com desconhecidos. Está normalmente quieto em um canto, onde é o bibelô dos enfermeiros. E você as lesões em torno de seus lábios. "

William Nyhan tem agora oitenta e um anos, é um homem alto, com cabelo aloirado e grisalho, de olhos azuis. Ele tem um laboratório com vista para um cânion selvagem perto do UCSD Medical Center. Um dia, quando eu o visitei, dois falcões de cauda vermelha foram subindo acima do canyon, traçando círculos no ar. Nos anos que se seguiram desde que ele identificou a síndrome de Lesch-Nyhan, ele descobriu ou co-descobriu uma série de outras doenças metabólicas hereditárias, e desenvolveu tratamentos eficazes para algumas delas. Descobriu como essencialmente curar uma doença genética rara chamada deficiência múltipla de carboxilase (a qual pode matar bebês na hora do nascimento) através da administração de pequenas doses de biotina, uma vitamina do complexo B. A descoberta de um tratamento para a síndrome de Lesch-Nyhan, no entanto, revelou-se mais difícil.

Décadas depois da descoberta da Síndrome de Lesch-Nyhan, ela é ainda misteriosa. Ela é talvez o exemplo mais claro de que uma simples mudança no DNA humano pode levar a uma mudança marcante no comportamento global. Em 1971, William Nyhan cunhou o termo "fenótipo comportamental" para descrever a natureza de doenças como a síndrome de Lesch-Nyhan. Um fenótipo é uma característica externa aparente, ou um conjunto de características externas aparentes, que surgem a partir de um gene ou de genes (por exemplo, olhos castanhos). Alguém que tem um fenótipo comportamental exibe um padrão de ações características que podem ser ligadas ao código genético. A síndrome de Lesch-Nyhan parece ser uma janela para as partes mais profundas da mente humana, oferecendo vislumbres da mecânica do funcionamento do código genético operando sobre o pensamento e a personalidade.

Uma criança nascida com a síndrome de Lesch-Nyhan parece normal no início, mas, por volta de três meses de idade, mostra-se um bebê bambo, que não pode segurar a cabeça ou sentar-se. Sua fraldas podem ter areia laranja. Quando nascem seus primeiros dentes, começa a usá-los para morder a si próprio e grita de terror e dor durante as crises de automutilação. "Recebo telefonemas no meio da noite com os pais dizendo: 'Meu filho está se mastigando em pedaços, o que eu faço?’” disse Nyhan. O menino acaba numa cadeira de rodas, porque não consegue aprender a andar. À medida que ele envelhece, seus comportamentos auto-lesiivos se tornam sutis ou mais elaborados, mais tortuosos. Ele parece estar possuído por um demônio, que sempre busca novos caminhos para machucá-lo. Ele cospe, bate, xinga as pessoas que ele mais gosta. Uma maneira de dizer se um paciente de Lesch-Nyhan não gosta de você é se ele está sendo bonzinho. ("Eu apanhei certa vez de Matthew", disse-me Lesch. Ele se debruçou sobre o menino e perguntou como estava se sentindo, quando Matthew lhe deu um soco no nariz). Ele come alimentos que não tolera, vomita em si mesmo, diz que sim quando quer dizer que não. Isso é conhecido como auto-sabotagem.

Poucas centenas de rapazes e homens que vivem nos Estados Unidos hoje têm sido diagnosticados como portadores da síndrome de Lesch-Nyhan. "Eu acho que conheço a maioria deles", disse Nyhan. Um rapaz, conhecido como JJ, acabou vivendo na unidade de pesquisa de Nyhan durante um ano, quando tinha onze anos. Ele era uma criança sociável, cujas mãos pareciam odiá-lo. Ao longo do tempo, enfiava os dedos dentro da boca e nariz e tinha quebrado e removido os ossos de seu palato superior e partes dos seus seios nasais, deixando uma caverna em seu rosto. Ele também havia mordido vários dedos. J.J. morreu no fim de sua adolescência. No passado, muitos pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan morriam na infância ou adolescência, de insuficiência renal (ambos os irmãos Mörlen morreram jovens). Hoje em dia, eles podem viver até os trinta ou quarenta anos, mas geralmente são frágeis e muitas vezes morrem de infecções como pneumonia. Ocasionalmente, um homem com a síndrome pode arremessar a cabeça para trás com tanta força que chega a quebrar o pescoço. Muitos pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan morrem de repente e, muitas vezes inexplicavelmente.

Uma pessoa com Lesch-Nyhan pode ser boazinha durante dias, até que, de repente, suas mãos saltam para a boca com a rapidez de um bote de cobra, e ela grita por socorro. Pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan sentem dor tão aguda quanto qualquer pessoa, e ficam horrorizados com a idéia de seus dedos ou  lábios serem mutilados. Eles se sentem como se suas mãos e boca não lhes pertencessem e estivessem sob o controle de outra coisa. Algumas pessoas com Lesch-Nyhan mastigam suas línguas, e há registo de alguns que cometeram auto-enucleação (arrancar um olho ou espetá-lo com um objeto pontiagudo). Quando o demônio de Lesch-Nyhan está cochilando, eles gostam de estar perto de pessoas, gostam de ser o centro das atenções, e fazem amizades facilmente. "Eles realmente são grandes pessoas, e eu acho que isso é parte da doença, também", disse Nyhan. Algumas pessoas com Lesch-Nyhan têm déficits cognitivos, enquanto outros são claramente brilhantes, mas sua inteligência não pode ser medida facilmente. "Como se mede a inteligência de alguém, se, quando você coloca um livro na frente dele, ele tem uma vontade irresistível de arrancar as páginas?" Nyhan perguntou.

 Em 1967, Edwin J. Seegmiller, um cientista do National Institutes of Health, e dois colegas, descobriram que, em pacientes com Lesch-Nyhan, uma proteína chamada hipoxantina guanina fosforribosiltransferase, ou HPRT, que está presente em todas as células normais, parece não funcionar. O trabalho dessa enzima é ajudar a reciclar DNA. As células estão constantemente quebrando o DNA em seus quatro blocos básicos de construção (representados pelas letras A, T, C e G, para adenina, timina, citosina e guanina). Este processo produz compostos chamados purinas, que podem ser usados ​​para formar o novo código. Se a HPRT está ausente, ou não funciona, então certas purinas formam-se nas células da pessoa, onde eventualmente são decompostas em ácido úrico, o qual satura o sangue e se cristaliza na urina.

No início da década de oitenta, um grupo de pesquisadores, liderado por Douglas J. Jolly e Theodore Friedmann, decodificou a seqüência de letras no gene humano que contém as instruções para produzir a HPRT. Ela inclui 657 letras que codificam a produção da proteína. Os pesquisadores também iniciaram o seqüenciamento desse gene em pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan. Cada uma delas tinha uma mutação no gene, mas, curiosamente, quase todas tinham mutações diferentes, não havendo uma única mutação que causasse a síndrome. As mutações aparentemente apareceram espontaneamente em cada família afetada. E, na maioria dos casos, o defeito consistia em apenas um erro em uma letra do código. Por exemplo, um garoto americano conhecido como D.G. tinha um único G substituído por um A - apenas uma das três bilhões de letras no código do genoma humano. Como resultado, ele se mutilava.

O gene HPRT é encontrado no cromossomo X. As mulheres têm dois cromossomos X em cada célula, e os homens têm um par XY. A síndrome de Lesch-Nyhan é uma desordem recessiva ligada ao cromossomo X. Isso significa que se um gene HPRT ruim em um cromossomo X é combinado com um gene normal no outro cromossomo X, a doença não se desenvolve. Uma mulher que tenha a mutação de Lesch-Nyhan a carrega em apenas um dos seus cromossomos X. Assim, ela não desenvolve a síndrome. Qualquer filho que ela tenha, no entanto, terá cinqüenta por cento de chance de herdar a síndrome, e qualquer filha terá cinquenta por cento de chance de ser uma portadora da mutação. (Exemplos deste tipo de doença são a hemofilia e uma forma de daltonismo vermelho-verde).

Outras mutações genéticas têm sido associadas a profundas mudanças comportamentais. A síndrome de Rett, que afeta principalmente as meninas, é causada por uma mutação em um gene que codifica a proteína MeCP2. Pessoas com a síndrome esfregam compulsivamente as mãos como se fossem lavá-las. Crianças com síndrome de Williams têm uma aparência de elfo, afinidade com a música e a linguagem e uma extrema sensibilidade ao som, sendo muito sociáveis​​. A síndrome de Williams é causada pela ausência de um trecho de código do cromossomo 7. ainda uma grande incerteza, porém, sobre que papel os genes desempenham em condições importantes tais como depressão, transtorno bipolar e transtorno de personalidade borderline. Mesmo quando há evidências de uma história familiar da doença, cientistas estão incertos sobre como um único gene pode coreografar um conjunto de comportamentos. cerca de vinte e cinco mil genes ativos no genoma humano, cada um com cerca de mil a mil e quinhentas letras de código. O genoma pode ser pensado como uma espécie de piano com vinte e cinco mil teclas. Em alguns casos, algumas teclas podem estar desafinadas, o que pode fazer a música soar mal. Em outros, se uma tecla está ausente, a música se transforma em uma cacofonia, ou o piano todo se auto-destrói.

Os estragos que as mutações de Lesch-Nyhan causam não podem ser facilmente desfeitos. Logo no início, Nyhan tentou dar alopurinol a seus pacientes, uma droga que inibe a produção de ácido úrico e é eficaz no tratamento da gota. Ele abaixou a concentração de ácido úrico em pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan, mas não reduziu seus comportamentos auto-lesivos. O ácido úrico parecia ser um outro sintoma e não uma causa do comportamento. Nyhan tem experimentado outros tratamentos, tais como restrições leves, que parecem relaxar os pacientes, e a remoção de certos dentes. "Estou dissoluto com esses dentes superiores", disse Nyhan. Alguns dentistas, no entanto, recusam-se a extrair dentes saudáveis​​, mesmo quando a síndrome de Lesch-Nyhan é explicada a eles.

Eu disse a Nyhan que não poderia imaginar o que seria viver com a doença. "Você pode perguntar a alguém que a tenha", respondeu ele.

Conheci James Elrod e Jim Murphy no inverno de 1999. Eles estavam vivendo próximo um do outro em bangalôs alugados em um bairro um tanto marginal em Santa Cruz, Califórnia. Elrod estava, então, em seus quarenta anos, e Murphy tinha pouco mais de trinta (Murphy morreu em 2004.. Elrod, que hoje tem quarenta e nove anos, é uma das pessoas mais velhas com a síndrome de Lesch-Nyhan). Os homens eram clientes da Mainstream Support, uma empresa privada contratada pelo Estado da Califórnia para ajudar pessoas com deficiências de desenvolvimento que vivem em ambientes comunitários. Antes de James Elrod vir para Santa Cruz, viveu por dezoito anos em uma instituição estatal de San Jose. Murphy tinha vivido a maior parte de sua vida em uma instituição em Sonoma. Profissionais da Mainstream, chamados de Equipe de Cuidados Diretos, ficaram com Elrod e Murphy em torno da hora marcada para nosso encontro, para ajudá-los com as tarefas diárias e para se certificarem de que eles não se machucariam. Elrod e Murphy tinham autoridade para contratar e demitir seus assistentes e direcionar seus trabalhos, apesar de assistentes poderem recusar pedidos se julgassem que poderiam colocar o cliente em situações de perigo.

Naquela época, a Mainstream era gerida por dois homens chamados Andy Pereira e Steve Glenn. "James e Jim são verdadeiros caras que têm altos e baixos", disse Pereira, na primeira vez em que conversei com ele. "Eles não são tipos dóceis. Eles se interessam por carros velozes e mulheres.". Glenn disse que ainda tinha dificuldade em ver-se no labirinto de Lesch-Nyhan. "Existem esses momentos de Lesch-Nyhan, quando você sente que parece que entendeu a coisa", disse ele. James e Jim são muito bons em nos contar quando pensam que estão em perigo de machucar a si prórpios, mas, sempre que eles estão fazendo alguma coisa, você tem que perguntar: é James ou Jim, ou é Lesch-Nyhan? ".

James Elrod tem um rosto quadrado, de boa aparência, que está marcado com cicatrizes, e olhos castanhos hiperalertas. Seus ombros e braços são grandes e poderosos, mas o resto do seu corpo parece um pouco reduzido. Certo dia, antes de ele estar na Mainstream, uma atendente deixou-o sozinho na hora do jantar por alguns minutos. Para horror de Elrod, sua mão esquerda pegou um garfo e usou-a para perfurar seu nariz e arrancá-lo, mutilando permanentemente seu rosto. "O meu lado esquerdo é o meu lado diabo", ele me disse. Quando o conheci, ele usava luvas de couro preto, de motociclista, que tinham sido reforçadas com Kevlar. Se ele pensava que sua mão esquerda estava o ameaçando ou a outra pessoa, ela a segurava ou batia nela com a mão direita. Ele é dono de uma picape e seus assistentes o levam nela aos arredores. Costumava vender flores no cais de Santa Cruz, e leva cartões explicando que tem uma doença rara que o compele a se machucar. “Tenho me machucado de várias formas, incluindo o nariz, como você pode ver", diz o cartão. "Vou até mesmo tentar me machucar por me meter em encrencas com os outros". Um dia, um homem comprou flores de Elrod e disse: "Deus te abençoe". "Coma merda", respondeu Elrod, e entregou ao homem o seu cartão de visita. Ao atravessar ruas em sua cadeira de rodas, Elrod tem sido conhecido por tentar rolar da cadeira em meio ao trânsito, gritando "Vão devagar, seus idiotas! Vocês não sabem o que é síndrome de Lesch-Nyhan?". Seus assistentes engalfinham-se com ele e o colocam em segurança.

Elrod estava sentado em frente a sua casa em sua cadeira de rodas quando cheguei. Era um dia ensolarado. Ele me ofereceu sua mão direita para cumprimentar. Quando apertei sua luva, o dedo indicador direito estava faltando. "Você quebrou meu dedo!" ele engasgou. Então sorriu e explicou que não tinha esse dedo. "Algumas pessoas ficam tristes quando faço isso", disse ele. "As crianças adoram. Querem quebrar o meu dedo novamente."

Nós conversamos por um tempo. "Ei, Richard, perigo", disse ele.

"O que há de errado?"

Ele cuidadosamente apontou para o lápis que eu estava usando para tomar notas. "O lápis está me assustando. Minha mão poderia agarrá-lo e colocá-lo no meu olho", disse ele. "É melhor você ir ver o meu vizinho."

Jim Murphy estava sentado em sua cadeira de rodas em uma mesa na sala de sua casa e um assistente chamado Michael Roth cortava panquecas e o alimentava com uma colher. Murphy era um homem esqueleticamente magro, com cabelos escuros e um rosto magro, bonito. Ele tinha um cavanhaque bem aparado e um corte de cabelo de exército. Seus olhos eram instáveis e seu olhar sensível. Os lábios estavam faltando. Dois de seus irmãos também haviam tido síndrome de Lesch-Nyhan e tinham morrido quando ainda eram jovens. "Jimmy será tímido quando você encontrá-lo", uma de suas irmãs me disse ao telefone. Alertou, no entanto, que eu deveria esperar ouvir um monte de xingamentos e palavrões. "Ele não pretende dizer essas coisas", disse ela. "Quando ele me xinga, eu apenas digo 'Eu também te amo’".

Naquele dia, em Santa Cruz, Murphy ficou me olhando com o canto dos olhos, com a cabeça jogada para trás e involuntariamente afastou-se, apoiado contra o encosto de cabeça de sua cadeira. Suas mãos estavam enfiadas em muitos pares de meias brancas e seu peito arfava de encontro a uma correia de borracha que o mantinha preso. Ele começou a dar murros e chutes em minha direção. Parecia estar suportando sua doença como um homem montado num cavalo selvagem. A cadeira de rodas tremeu.

Mantive distância. "Prazer em conhecê-lo", eu disse.

"Foda-se. Prazer em conhecê-lo". Murphy tinha uma voz embriagada, mas de sonoridade agradável. Sua fala foi muito difícil de entender. Ele olhou para Roth. "Estou nervoso", disse ele.

"Você quer ser contido?" Roth perguntou.

"Sim".

Roth colocou os pulsos e tornozelos de Murphy em tiras de tecido macio presas com velcro.

"Estou um pouco nervoso também" eu disse, e sentei-me no sofá.

"Eu não me importo. Tchau".

Eu me levantei para sair.

Roth explicou, no entanto, que essa era uma daquelas situações de Lesch-Nyhan, onde as palavras significam o oposto.

Mais tarde, Murphy tentou me dizer como era sua doença. "Você tenta expulsar todos de perto de você e então você se sente mal quando faz isso", disse ele. "Se você chegar muito perto de mim, eu poderia...", disse ele. O final foi indecifrável.

"Desculpe, o quê?"

"Poderia te dar um cascudo, Richard. Eu diria: 'Traga minha água', e te daria um soco quando você trouxesse."

Um par de luvas de boxe vermelhas estão penduradas na parede. Todos os dias, seus assistentes o colocam em uma esteira no chão, onde ele rola e faz alongamentos e depois pratica boxe com eles. "Eu poderia nocauteá-lo, definitivamente", ele me disse. Eu não duvidei.

Foram realizadas cerca de vinte autópsias de pacientes com Lesch-Nyhan ao longo dos anos. Seus cérebros pareciam ser perfeitamente normais. "É um problema nas ligações, na forma como o cérebro funciona", disse H. A. Jinnah, neurologista do Johns Hopkins. Durante algumas das autópsias, os médicos testaram amostras de tecidos do cérebro para ver se eles continham níveis normais de neurotransmissores, substâncias químicas que atuam entre as células nervosas. Nos cérebros de pessoas com Lesch-Nyhan, uma área do tamanho de um limão que contém estruturas denominadas gânglios basais, perto do centro do cérebro, tinha oitenta por cento menos dopamina - um neurotransmissor importante - do que um cérebro normal. Os gânglios basais são ligados em circuitos que funcionam em todo o cérebro e afetam uma ampla gama de funções: controle motor, pensamento de nível superior e movimento dos olhos, bem como o controle do impulso e o entusiasmo.

"Pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan têm um número excessivo de movimentos involuntários", disse Jinnah. "É como se eles estivessem pisando no acelerador com muita força quando tentam fazer alguma coisa. Se você lhes pede para olhar para uma bola vermelha, por exemplo, os olhos apontam para todos os lugares, exceto para a bola vermelha, e eles não podem explicar por que. Então, se você introduz uma bola amarela em seu campo de visão, mas você não diz nada sobre isso, eles olham para a bola amarela. No momento em que você chamar a sua atenção a ela, porém, eles desviam o olhar.”

"A síndrome de Lesch-Nyhan é o ponto extremo de um espectro de comportamentos auto-lesivos", Jinnah prossegue. "Todos nós fazemos coisas que são ruins para nós. Nós vamos sentar em frente à televisão e comer um litro de sorvete. Nós todos temos impulsos auto-lesivos, também. Ao dirigir um carro, nós podemos ter um impulso estranho de conduzi-lo de maneira errada e espatifá-lo em alguma coisa. "Edgar Allan Poe chamou essas inspirações de "o diabinho do perverso." O diabinho podem ser sinais que saem dos gânglios da base. As pessoas normais sentem os sussurros do diabinho, mas na maioria das vezes elas não agem de acordo com eles. A síndrome de Lesch-Nyhan pode sugerir uma forma na qual o pensamento original e as idéias parecem surgir como impulsos que não são reprimidos, e quão próximo é o terreno entre a criatividade e a auto-destruição. "Muitas pessoas roem as unhas", disse Jinnah. "Eles vão dizer que é ruim e que não querem fazê-lo. Elas dirão ‘Às vezes eu fico nervoso e começo a roer minhas unhas’. pessoas que mordem os lábios nervosamente. Agora, vamos aumentar um pouco o volume: algumas pessoas roem as cutículas. Aumente o volume um pouco mais...: algumas pessoas roem as cutículas até sangrar. Agora, vamos aumentar muito o volume: você tem alguém mordendo os tecidos e ossos em seus dedos, mordendo o dedo todo e mastigando os lábios, chegando até a arrancá-los . Onde, nesse espectro de comportamento, está o livre arbítrio? "

De certa forma, a síndrome de Lesch-Nyhan parece a doença de Parkinson revertida. Pessoas com Parkinson têm dificuldade de iniciar ações físicas, e diz-se que são hipocinéticas. Pessoas com Lesch-Nyhan iniciam ações com muita facilidade e não podem parar uma ação quando ele começa. Diz-se que são hipercinéticas. Como a doença de Parkinson é também associada a uma deficiência de dopamina nos gânglios da base, os cientistas olham para cada doença em busca de pistas para a outra.

Em 1973, um pesquisador chamado George Breese, da Universidade North Carolina School of Medicine, estava trabalhando com ratos nos quais modelaram a doença de Parkinson. Ele estava tratando ratos recém-nascidos com compostos que alteraram os níveis de dopamina no cérebro, quando, para sua surpresa, os ratos começaram a morder as patas. Ele tinha inadvertidamente criado um rato com sintomas da síndrome de Lesch-Nyhan. "Eu não vou aprofundar os detalhes do que os ratos estavam fazendo. Eles não estavam mordendo seus tecidos da boca, à maneira como os pacientes humanos fazem", disse-me Breese. Se ele desse aos ratos que exibiam comportamentos auto-lesivos um outro composto, eles paravam de morder as patas, ou seja, ele encontrou uma forma de reverter os sintomas. "Nós tratamos o rato no momento em que vimos o animal produzir o primeiro ferimento em suas patas", disse ele. O composto, no entanto, nunca foi aprovado para uso em humanos.

Em abril de 2000, uma neurocirurgiã da Tokio Women’s Medical University, chamada Takaomi Taira, realizou uma cirurgia no cérebro de um homem de dezenove anos de idade com síndrome de Lesch-Nyhan. O jovem estava morando com seus pais em um distrito ao norte de Tóquio. Além de exibir comportamentos auto-lesivovos, ele tinha os movimentos espásticos, duros e desajeitados da distonia. "Estes movimentos distônicos foram ficando mais graves, durando quase dias inteiros, e seus pais estavam desesperados", disse Taira recentemente. Decidiu-se realizar um procedimento conhecido como estimulação cerebral profunda (deep-brain stimulation) para tentar acalmar os movimentos.

A estimulação cerebral profunda foi desenvolvida por médicos há mais de vinte anos para tratar pessoas com doença de Parkinson. Um ou mais fios finos são inseridos através de aberturas no crânio e são cuidadosamente guiados através do cérebro até parar em uma parte dos gânglios basais chamada globus pallidus (globo pálido). Os fios são conectados a uma bateria, que é implantada sob a pele do peito do paciente e uma fraca corrente pulsante de energia elétrica percorre até o globo pálido, entorpecendo um ponto do tamanho de uma ervilha. O paciente não sente nada. O procedimento com freqüência ajuda a acalmar os tremores nas mãos e membros de pacientes com Parkinson, ajudando-os a andar com mais facilidade.

"Após a cirurgia, o movimento distônico do menino desapareceu completamente", disse Taira. Ele o mandou para casa com o estimulador cerebral profundo, sentindo que a operação tinha ajudado. Vários meses depois, os pais do jovem disseram a Taira que ele tinha parado de se morder. Ele ainda estava em uma cadeira de rodas e seus níveis de ácido úrico mantiveram-se elevados, mas estava lendo quadrinhos e assistindo televisão, e parecia estar aproveitando a vida como nunca antes. "Foi completamente inesperado, extraordinário, quase inacreditável", disse Taira. Alguns anos mais tarde, o jovem de repente começou a morder novamente as mãos e os pais o trouxeram de volta. "Eu chequei o aparelho e constatei que a bateria estava fraca. Troquei a bateria e seus sintomas foram controlados de novo", disse Taira.

Um grupo de pesquisa em Montpellier, na França, liderado por um neurocirurgião chamado Philippe Coubes, realizou implantes de estimulação cerebral profunda em cinco pacientes com Lesch-Nyhan. Seu método envolve a inserção de quatro fios até o cérebro. "Até agora, temos três pacientes que estão evoluindo muito bem e dois que estão tendo uma resposta intermediária - a resposta de um desses não é ruim, mas não é tão boa quanto as dos outros", disse Coubes. "Eu não estou certo de que seremos capazes de controlar todos os seus comportamentos a longo prazo, mas estamos no processo de obtenção de uma melhor compreensão da estimulação cerebral profunda para estes pacientes." Odiabinho do perverso” pode ser posto para dormir, mas ninguém sabe como fazê-lo ir embora.

Os cientistas não sabem ao certo porque a estimulação cerebral profunda parece funcionar em alguns pacientes, ou se ela pode ajudar os outros. Na verdade, os resultados são um lembrete de quão ocultos ainda são os funcionamentos do cérebro. Também não são claros os riscos envolvidos. William Nyhan foi cauteloso sobre o potencial do procedimento: "Eu vejo esses garotos como frágeis, e eles não respondem muito bem a invasões cirúrgicas", disse ele.

No Johns Hopkins, no entanto, Jinnah estava ansioso para começar um estudo sobre um grupo de pelo menos oito pacientes com Lesch-Nyhan, usando estimulação cerebral profunda. Ele ainda precisa garantir o financiamento e obter aprovação do governo federal. (O processo não foi aprovado especificamente para pacientes com Lesch-Nyhan).

Jinnah nunca teve facilidades para obter financiamento e atenção para a investigação sobre Lesch-Nyhan. Ele diz: "As pessoas me perguntam: 'Por que não estudar as doenças mais comuns? Minha resposta é que se nós, neurologistas, o fizéssemos, todos nós estaríamos estudando doença de Alzheimer, doença de Parkinson e acidentes vasculares. Existem milhares de outras doenças cerebrais por aí, e todos elas são órfãs. Mas estas doenças raras podem nos ensinar algo novo sobre o cérebro, algo relevante para as doenças comuns do cérebro que afetam tantas pessoas. "

Voltei várias vezes para visitar James Elrod e Jim Murphy, e comecei a ajudar sua equipe com as tarefas diárias. Elrod cuspiu na minha cara algumas vezes, e me deu um jab de esquerda no queixo. Certa vez, seus dedos cobertos por tecido Kevlar apertaram minha pele como alicates. Ele se desculpou enquanto nós dois trabalhávamos para soltá-los. Murphy, em sua festa de trigésimo terceiro aniversário, enfiou o rosto em seu bolo e depois me deu um soco. No entanto, passei a gostar muito deles. Murphy tinha uma paixão por corridas off-road, paixão esta que ele não era geralmente capaz de saciar. Um dia, em 2001, apareceu em Santa Cruz em uma Ford Expedition alugada com tração nas quatro rodas. Uma assistente nomeada, Tracye Overby, estava com Murphy, enquanto outro, chamado Chris Reeves, foi designado para Elrod. Eu dirigi o grupo para um leito de lago seco perto de Watsonville chamado College Lake, que tínhamos ouvido falar que era um bom lugar para dirigir um quatro-rodas. No caminho, parei para pedir informações a um soldado do estado da Califórnia. "Eu não aconselho ir até com pessoas com deficiência", disse ele.

College Lake era uma extensão de milhas de largura de barro escorregadio, coberto com areia. O leito do lago possuia um centro escuro e úmido cercado por bosques de salgueiros. Eu dirigi a Expediction para a areia. "Mais rápido", disse Murphy. "Você está dirigindo como uma senhorinha velha." Eu liguei o motor, a Expediction saltou para a frente e correu pela areia. Quando o carro virou bruscamente, o homem gritou de alegria. Eu executei uma manobra de oito em seguida, direcionando o veículo ao centro do lago à plena potência. Passamos a carcaça de um velho caminhão submerso, enterrado até o topo no barro. A Expediction reduziu a velocidade. Em seguida, começou a tombar e percebi que estava dirigindo no que se pode chamar de lodo. Se freiasse, nós iríamos rodar. Eu pisei no acelerador, mas já era tarde demais. As rodas começaram a girar, chegamos a um momento de impasse e o carro afundou até as portas, quando o motor parou.

Houve um momento de silêncio e, em seguida, Elrod e Murphy entraram em erupção com palavrões dirigidos a mim. Os dois ajudantes pareciam impassíveis. "Esta é apenas a natureza do nosso trabalho", afirmou Reeves. "Tudo o que você planeja nunca acontece como você planejou".

Depois de várias tentativas em meu celular, cheguei a uma empresa de reboque que estava disposta a tentar nos tirar de lá, mas teria de ser pago antecipadamente, de preferência em dinheiro, e sem resultados garantidos.

"Estou nervoso", disse Murphy, enquanto esperávamos. O sangue escorreu de sua boca, ele estava mordendo a si mesmo. Overby o tirou do carro, levou-o para a areia na sombra de alguns salgueiros e sentou-se, segurando-o no colo. Ela limpou a boca de Murphy com um guardanapo, embalou sua cabeça nos braços e começou a cantar com ele. Ele começou a rir.

Elrod, sentado no banco da frente da Expediction, começou a rir também. Os homens eram conhecedores do que eu tinha feito: eu tinha ignorado o conselho de um policial e levado dois homens deficientes em alta velocidade na lama. Eles viram algo familiar no meu comportamento.

Três anos depois, em 2004, Murphy estava com pneumonia. Quando ficou claro que ele estava morrendo, eu liguei para ele para dizer adeus. Logo que ele entrou na linha, eu podia ouvir vozes ao fundo, mais de trinta pessoas tinham ido para vê-lo. "Eu vou ficar bem", disse ele, e acrescentou: "Tome cuidado com a condução."

Num outro dia, antes de Murphy morrer, eu tinha visitado James Elrod. Tracye Overby, que estava trabalhando como assistente de Elrod, teve que mudar os forros de seda que ele usava dentro de suas luvas de moto.

Elrod não gostava de ver as próprias mãos. Ele me pediu para segurar seus pulsos enquanto Overby tirava as luvas. As mãos que surgiram eram pálidas, com dedos magros que tinham sido roídos perto do osso em alguns lugares, e um dedo estava faltando. "Perigo", disse ele. Seus olhos ganharam um estranho olhar brilhante e branco. Ele estava olhando para a mão direita. Seu braço estava tenso e trêmulo. Como se estivesse sendo puxada por um ímã, a mão se moveu na direção de sua boca. "Ajuda! ", ele chamou com uma voz abafada.

Nós nos jogamos sobre Elrod. Precisamos de toda a nossa força para conter sua mão. Tão logo nós tivemos o controle dela, ele relaxou. Overby colocou as luvas novamente.

"Ninguém sabe sobre esta doença. Todo dia eu estou esperando por uma cura", disse Elrod. "Eu queria que você visse isso".

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Tradução de um dos materiais distribuídos pelo Dr. Brian Iwata no evento ESPCA Autism, ocorrido em São Carlos de 9 a 13 de Janeiro de 2012

Análise Funcional de Comportamentos Auto-Lesivos ou de Transtornos de Comportamento Relacionados


Noção Geral:

Lógica: A avaliação expõe o cliente a condições que podem estabelecer a ocasião para comportamentos auto-lesivos. Essas condições são baseadas em anos de pesquisa indicando que reforçamento positivo ou negativo (tanto social quanto automático) são conseqüências que mantêm comportamentos auto-lesivos. Por meio da identificação de quais fontes de reforçamento são responsáveis pelo problema de comportamento do cliente, programas individualizados de tratamento podem ser desenvolvidos.

Proteção contra riscos: Embora a proteção do cliente seja de primária importância, é melhor que equipamentos de proteção sejam utilizados o menos possível durante a avaliação. Se o risco físico é uma preocupação, obtenha um critério de finalização da sessão do pessoal médico. Se o comportamento é severo a ponto de todas as ocorrências deverem ser bloqueadas, a pessoa não é indicada para participação em uma análise funcional. Encaminhe tais indivíduos para consulta ou participação em procedimentos modificados de avaliação.

Consentimento informado: É importante que se garanta que pais, responsáveis e membros da equipe interdisciplinar compreendam o propósito da avaliação e aprovem sua utilização.

Medicação: É ideal que seja conduzida a avaliação na ausência de medicação psicotrópica. Se isso não for possível, o nível de medicação deve ser mantido constante até que a avaliação seja completada.

Local das sessões: Escolha uma sala afastada de atividades em andamento. É preferível uma sala com um espelho falso. Se não houver disponível, observadores devem permanecer afastados do cliente e evitar contato visual ou interação de qualquer tipo.

Duração das sessões: As sessões normalmente duram 10 minutos, a menos que o critério de finalização seja alcançado, e são marcadas com um cronômetro (normalmente são realizadas de 40 a 60 sessões).

Comportamento-alvo: É o comportamento que é registrado por observadores e que recebe conseqüências de um terapeuta nas condições de demanda e de atenção. Sob a maioria das circunstâncias, cada ocorrência do comportamento-alvo será registrada.

Terapeuta: É o indivíduo que interage com o cliente como especificado abaixo. O ideal é que um terapeuta diferente esteja associado com cada uma das condições abaixo (por exemplo, um terapeuta conduz todas as sessões de atenção, outro conduz todas as sessões de demanda etc.). Se um único terapeuta conduz todas as sessões, será aconselhável que ele vista uma camisa de cor diferente ao conduzir cada tipo de sessão.

Condição sozinho
Propóstito: Esta é uma condição de teste para reforçamento automático. Se o comportamento ocorre a uma taxa alta na ausência de interação social, é provável que ele produza seus próprios reforçadores (como na auto-estimulação).
Condições antecedentes: Nenhum terapeuta é necessário para essa condição, ou, se um está presente, nenhuma interação social ocorre. O quarto não deve conter brinquedos, materiais de lazer ou reforçadores.
Conseqüência: Não há conseqüências sociais para o comportamento (por exemplo, nenhum comentário ou mudanças de expressões faciais).

Condição de atenção
Propósito: Esta é uma condição de teste para reforçamento positivo social. Se a taxa de um comportamento-alvo é maior nesta condição do que em outras, é provável que o comportamento seja mantido por atenção como conseqüência.
Condições antecedentes: O quarto deve conter alguns brinquedos ou materiais de lazer, os quais estão livremente disponíveis durante a sessão. As sessões começam com o terapeuta declarando que deve fazer alguma tarefa, ler o jornal, conversar com um colega etc. (isto é, não atender o cliente). Deste ponto em diante, o terapeuta não interage com o cliente a menos que o comportamento-alvo ocorra.
Conseqüência: Em seguida a cada ocorrência de um comportamento-alvo, o terapeuta se aproxima do cliente e faz uma afirmação de preocupação, que pode ser pareada com um breve contato físico. Por exemplo, enquanto diz “Não faça isso, você pode se machucar”, o terapeuta pode também gentilmente segurar o braço do cliente, afagar suas costas em um movimento para acalmá-lo, ou mesmo olhar e apontar para o local do corpo que foi alvo do comportamento auto-lesivo. Estas interações devem durar em torno de 5-10 segundos. Se o cliente continua a se engajar no comportamento durante a interação, esta deve também continuar.

Condição de diversão
Propósito: Esta condição é um controle para as outras três condições de teste, porque o cliente não está sozinho, atenção está disponível e tarefas não são apresentadas. Como resultado, o comportamento-alvo deve ocorrer menos frequentemente nesta condição. Se o comportamento-alvo ocorre em uma taxa alta nesta condição, é possível que o comportamento produza seus próprios reforçadores e que as atividades alternativas não compitam com o comportamento-problema. Se o comportamento-problema é alto na condição diversão e também alto na condição de demanda, é possível que seja mantido por fuga de interações sociais em geral.
Condições antecedentes: A sala deve conter brinquedos, materiais de lazer e reforçadores conhecidos. O cliente deve ter acesso livre aos itens. A intervalos de 30 segundos o terapeuta deve responder a qualquer comportamento social apropriado iniciado pelo cliente.
Conseqüência: Não há conseqüências para comportamentos-problema, exceto que a atenção deve ser atrasada se o comportamento-problema ocorrer logo que a atenção esteja prestes a ser oferecida.

Condição de demanda
Propósito: Esta é uma condição de teste para reforçamento negativo social. Se um comportamento-alvo ocorre mais frequentemente nesta condição, é provável que o comportamento seja mantido por fuga de demandas de tarefas.
Condições antecedentes: O terapeuta inicia a sessão apresentando uma demanda de tarefa relevante (educacional, vocacional, auto-cuidado etc.) ao cliente. Por exemplo, “penteie seu cabelo” ou “hora de trabalhar”. Se o cliente não colabora depois de 5 segundos, o terapeuta demonstra a resposta correta (ou fornece uma dica física). Se o cliente não colabora dentro de 5 segundos a partir da dica, o terapeuta guia fisicamente o cliente para realizar a tarefa. Estas tentativas de instrução são repetidas até que a sessão termine. Normalmente é melhor que seja apresentada uma variedade de tarefas, mas que sejam incluídas quaisquer tarefas que se suspeite serem desagradáveis para o cliente. Nenhuma outra interação entre terapeuta e cliente deve ter lugar.
Conseqüência: Em seguida a cada ocorrência de um comportamento-alvo, a tentativa de instrução (demanda) é imediatamente terminada sem comentários do terapeuta, e a próxima tentativa é adiada por cerca de 30 segundos.

Outras considerações
Seqüência das condições: As condições de avaliação normalmente são apresentadas em uma seqüência fixada na seguinte ordem: sozinho, atenção, diversão e demanda. Sempre que possível, é recomendável que se mantenham terapeuta, locais e materiais constantes em cada condição (por exemplo, o mesmo terapeuta, local e materiais são usados em todas as sessões de diversão) para facilitar a discriminação dentre as condições de avaliação. Clientes ocasionalmente podem não discriminar muito bem as diferentes condições, o que pode produzir resultados duvidosos. Assim, dois arranjos alternativos são possíveis. No delineamento reverso, uma única condição (por exemplo, sozinho) é continuada até que os dados se mostrem estáveis; então a próxima condição (por exemplo, atenção) é introduzida, e assim por diante. A outra alternativa é a avaliação em pares, na qual uma condição de teste (por exemplo, atenção) é alternada com o controle (diversão), seguida por outro par teste-controle (demanda vs. diversão) etc.
Outras condições: As condições acima representam uma configuração geral de “sondagens” de avaliação que simulam o ambiente natural. Alguns clientes têm histórias incomuns que podem requerer modificações nas condições acima ou a adição de novas condições. Por exemplo, um indivíduo cujo comportamento-problema seja mantido por atenção pode exibir esse comportamento apenas se outra pessoa (um colega) estiver recebendo atenção. Outro pode exibir o comportamento-problema para fugir de algumas tarefas (por exemplo, auto-cuidado), mas não de outras. Se os dados da avaliação inicial não são claros, a consistência de implementação foi verificada e as condições foram tentadas utilizando-se o delineamento reverso, devem-se considerar alterações sistemáticas das condições de avaliação.

Variações no formato da avaliação
Análise Funcional Breve (Brief Functional Analysis – BFA): Se o tempo de avaliação é extremamente limitado (por exemplo, apenas uma parte de um dia está disponível), reduza a duração da sessão para 5 minutos e conduza quantas sessões o tempo permitir.
Análise Funcional de Latência (Latency Functional Analysis): Se o comportamento-problema é bastante severo e não se pode permitir que ocorra muito frequentemente, conduza sessões como descrito acima, mas finalize a sessão após a primeira ocorrência do comportamento-problema (após fornecer a conseqüência apropriada). Ao invés de contar o número de comportamentos que ocorrem, a medida será a latência desde o início da sessão até a primeira ocorrência do comportamento-problema (latências curtas do comportamento-problema em uma dada condição de teste indica a função).
Trial-Based Functional Analysis: Esta avaliação é mais útil quando se tenta conduzir uma avaliação durante atividades em andamento, como em ambientes de sala de aula. Ao invés de se conduzir “sessões”, sondagens breves são inseridas ao longo do dia. Cada sondagem consiste de um segmento controle de 2 minutos seguido por um segmento de teste de 2 minutos. (1) Demanda: Controle – professor próximo, mas tarefas não são apresentadas. Teste – professor apresenta tarefas como na condição de demanda. (2) Atenção: Controle – professor interage socialmente com o estudante. Teste – professor anda para longe e ignora o estudante. (3) Sozinho: períodos de 2 minutos durante os quais o estudante não tem acesso a atenção, tarefas etc. Conduza sessões por vários dias, registre se o comportamento-problema ocorre durante cada par de segmentos controle-teste, e depois adicione a proporção de ensaios de um dado tipo durante os quais o comportamento-problema ocorreu.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A Motivação de Comportamentos Auto-Lesivos

Disponibilizo no link abaixo a tradução de um artigo clássico da literatura analítico-comportamental sobre comportamento auto-lesivo:

http://www.4shared.com/document/rMU5fV5I/A_Motivacao_de_Comportamentos_.html

Link para o original em inglês:
The Motivation of Self-Injurious Behavior: a Review of Some Hypotheses
http://www.accesspointkids.com/uploads/Carr_1977_-_Self_Injurious_Behavior.pdf

Ainda que o foco do artigo não seja especificamente voltado ao tratamento, mas à identificação de variáveis relacionadas a auto-lesivos, espero que a tradução ajude a disseminar a informação de que há tratamento para esse problema grave que afeta muitas pessoas com deficiências de desenvolvimento.

Após 1977, data de publicação do artigo de Edward G. Carr, houve a publicação de muitos e muitos artigos com descrições detalhadas de avaliação e tratamento. Para aqueles que se interessarem por esses avanços obtidos por analistas do comportamento nas últimas décadas, sugiro uma consulta ao Journal of Applied Behavior Analysis - JABA - com os termos "self-injurious" e "self-injury", no link abaixo:

http://seab.envmed.rochester.edu/jaba/jabaindx.asp

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

São incompatíveis a proposta de planejamento cultural de Skinner e o liberalismo econômico?

Milton Friedman operacionaliza liberdade em muitos momentos como ausência ou diminuição de coerção, argumento já abordado e ampliado nas análises de Skinner sobre o uso também do reforço positivo como estratégia de controle de agências governamentais.


Não creio que haja incompatibilidade entre o liberalismo econômico e as propostas skinnerianas de planejamento cultural e "diversificação planejada", sobretudo aquelas apresentadas em Beyond Freedom and Dignity. Teríamos talvez que aparar alguns excessos ideológicos, tanto de Friedman quanto de Skinner.


Considero que análises funcionais podem contribuir muito para o planejamento do que Friedman chamava de "um governo da lei ao invés de um governo de homens" e das "normas ao invés de autoridades". Fazer boas leis e normas exige, sobretudo, descrição de contingências e modificação de novas contingências.


O conceito de liberalismo se tornou um espantalho em debates, os quais são levados a cabo muitas vezes por pessoas que não leram uma linha sequer sobre registros históricos da gênese da ideologia liberal. Cria-se um liberalismo espantalho, que nunca existiu, dá-se a ele o nome de "neo-liberalismo" e começa-se a atacá-lo.


A ideologia que se tornou historicamente conhecida como liberalismo econômico não surgiu em contextos em que pessoas defendiam a ausência de normas ou de qualquer tipo de regulação da economia, como muito se tem dito. Na verdade, defendiam normas coletivamente negociadas entre cidadãos diversos que produziam riqueza, praticavam comércio, vendiam sua força de trabalho, em suma, que negociavam entre si das mais diversas formas.

O liberalismo econômico surgiu ainda antes de Adam Smith, em contextos de descentralização de poder em culturas sob regimes monárquicos, nas quais pequenas classes dirigentes ditavam normas a serem seguidas por muitos na prática da negociação e do comércio. Normas ditadas por monarcas invariavelmente serviam à defesa de apadrinhados da nobreza. Cidadãos comuns começaram então a defender a liberdade para negociarem e obterem consequências advindas dessas negociações sem que regras impostas pela classe monárquica engessassem suas negociações.
 
Nenhuma norma é instituída sem que uma pessoa ou um grupo de pessoas a tenha antes planejado e concebido. O problema é que muitas normas que regulam relações entre partes que negociam são ruins para todos no longo prazo, ou por não se ter tido o devido cuidado ao prever suas consequências, ou por atenderem a interesses imediatistas de legisladores - populismo, demagogia, legislação eleitoreira etc.

Relações de negociação entre indivíduos ocorrem de modos não planejados o tempo todo. É possível descrever essas relações, e, com base nessas descrições, formular normatizações pontuais que se mostrem necessárias, porém sem a institucionalização do engessamento em negociações. Estas podem ocorrer de modo difuso entre indivíduos na sociedade.

Planejadores e legisladores existem e sempre existiram em culturas organizadas por normas, e, no caso do Brasil, podemos dizer que temos tido péssimos planejadores já há bastante tempo, com raríssimas excessões.

Planejadores não têm conseguido prever satisfatoriamente as consequências das normas que instituem. Estas costumam ser mantidas por décadas, e, ao mesmo tempo em que oneram cidadãos, tanto pobres como ricos, perpetuam de modo institucionalizado a má qualidade na gestão de gastos públicos e burocracias desnecessárias.

Um exemplo disso é a seguridade social compulsória, ou previdência. Há uma norma que nos obriga a poupar e há outra norma que determina que essa nossa poupança deve obrigatoriamente ser gerida pelo governo. Os mesmos governos que, por meio de normas falhas, desperdiçam os recursos de nossa poupança compulsória, o fazem com a justificativa de que estão nos garantindo melhores condições futuras, o que é demonstravelmente uma inverdade.

Um trecho de Friedman, em seu livro Capitalismo e Liberdade, deixa claro que não há em suas propostas, como alguns analistas do comportamento teimam em sugerir (ao que parece,sem terem lido o autor) a postura ingênua de se conceber liberdade como ausência absoluta de controle:



“Liberdade política significa ausência de coerção sobre um homem por parte de seus semelhantes. A ameaça fundamental à liberdade consiste no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado – um sistema de controle e equilíbrio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite, assim, que a força econômica fiscalize o poder político, ao invés de fortalecê-lo.”

Em outros trechos, Friedman deixa claro que liberalismo econômico não significa a defesa da ausência de regras, mas sim a defesa de que as regras sejam claras e válidas para todos, tanto para cidadãos comuns como para governantes. No mesmo livro aqui citado, há um subtítulo que é, por si mesmo, esclarecedor a esse respeito: “Normas ao Invés de Autoridades”.

Outros trechos do livro de Friedman que me parecem também esclarecedores:

“Vista como um meio para a obtenção da liberdade política, a organização econômica é importante devido ao seu efeito na concentração ou dispersão do poder. O tipo de organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a liberdade política, porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite que um controle o outro.”
 
“Fundamentalmente, só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões. Um é a direção central, utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro, a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado.”
 
“A possibilidade da coordenação por meio de ação voluntária está baseada na proposição elementar de que ambas as partes de uma transação econômica se beneficiam dela, desde que a transação seja bilateralmente organizada e voluntária. A troca pode, portanto, tornar possível a coordenação sem a coerção.”
 
“Enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que diz respeito à maior parte de suas atividades. O consumidor é protegido da coerção do vendedor devido à presença de outros vendedores com quem pode negociar. O vendedor é protegido da coerção do consumidor devido à existência de outros consumidores a quem pode vender. O empregado é protegido da coerção do empregador devido aos outros empregadores para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isso, impessoalmente, e sem nenhuma autoridade centralizada.”
 
“A economia livre dá às pessoas o que elas querem e não o que um grupo particular acha que devem querer.”
 
“A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das "regras do jogo" e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos - e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo.”

“Uma das características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos indivíduos de desejar e propor abertamente uma mudança radical na estrutura da sociedade - desde que tal empresa se adstrinja à persuasão e não inclua a força ou outra forma de coerção.”
 
“Numa sociedade de mercado livre, é suficiente ter fundos. Os fornecedores de papel estão dispostos a fornecer material tanto ao Daily Worker quanto ao Wall Street Journal. Numa sociedade socialista, não seria suficiente ter os fundos. O hipotético partidário do capitalismo [em uma sociedade socialista] teria que persuadir uma fábrica de papel do governo a vender-lhe o material; uma editora do governo a imprimir para ele; o serviço de correios do governo a distribuir seus panfletos; uma agência do governo a lhe alugar uma sala para reuniões e conferências.”
 
“Uma pessoa pode acreditar, como eu acredito, que o comunismo destruirá todas as nossas liberdades; uma pessoa pode opor-se a ele tão firmemente quanto possível e, no entanto, ao mesmo tempo, também acreditar que numa sociedade livre é intolerável que um homem seja impedido de dizer e fazer acordos voluntários com outros, acordos esses mutuamente atraentes, porque acredita no comunismo, ou está tratando de promovê-lo. Sua liberdade inclui sua liberdade de tentar promover o comunismo. E a liberdade também inclui, é claro, a liberdade de outros de não negociarem tais circunstâncias.”
 
“Para o liberal, os meios apropriados são a discussão livre e a cooperação voluntária.”
 
“Do mesmo modo que um bom jogo exige que os jogadores aceitem tanto as regras quanto o árbitro encarregado de interpretá-las e de aplicá-las, uma boa sociedade exige que seus membros concordem com as condições gerais que presidirão as relações entre eles, com o modo de arbitrar interpretações diferentes dessas condições e com algum dispositivo para garantir o cumprimento das regras comumente aceitas. Como nos jogos, também nas sociedades, a maior parte das condições gerais constitui o conjunto de costumes, aceitos automaticamente. Quando muito, só consideramos explicitamente pequenas modificações nele introduzidas, embora o efeito cumulativo de uma série de pequenas modificações possa vir a constituir uma alteração drástica nas características do jogo ou da sociedade. Tanto nos jogos quanto na sociedade, nenhum conjunto de regras pode prevalecer, a não ser que a maioria dos participantes as obedeça durante a maior parte do tempo, sem a necessidade de sanções externas, a não ser, portanto, que exista um consenso social subjacente. Mas, não podemos contar somente com o costume ou com esse consenso para interpretar e pôr as regras em vigor; é necessário um árbitro. Esses são, pois, os papéis básicos do governo numa sociedade livre - prover os meios para modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A necessidade do governo nesta área surge porque a liberdade absoluta é impossível.”
 
“Que significado se deve dar à palavra ‘livre’ quando qualifica ‘iniciativa’? Nos Estados Unidos, "livre" tem sido entendido como significando que todos têm a liberdade de fundar uma empresa - o que significa que as empresas existentes não têm a liberdade de manter os competidores fora do campo, a não ser com a venda de produtos melhores ao mesmo preço ou dos mesmos a preço mais baixo. Na tradição continental, por outro lado, significa em geral que as empresas têm a liberdade de fazer o que quiserem, incluindo a fixação de preços, a divisão do mercado e a adoção de outras técnicas para manter afastados os competidores em potencial.”
 
“Em suma, a organização da atividade econômica através da troca voluntária presume que se tenha providenciado, por meio do governo, a manutenção de leis e normas que previnam a coerção de um indivíduo por outro, garantindo a execução de contratos voluntariamente estabelecidos, a definição do significado de direitos de propriedade, a sua interpretação e execução e o fornecimento de uma estrutura monetária.”
 
“Acreditamos que os pais são geralmente os mais habilitados para proteger seus filhos e proporcionar que se desenvolvam como indivíduos responsáveis, para os quais a liberdade é apropriada. Mas não acreditamos na liberdade dos pais para fazer o que quiserem com outras pessoas. Crianças são indivíduos responsáveis em potencial, e quem acredita em liberdade acredita em proteger seus direitos últimos.”
 
“Devemos confiar em nosso julgamento falível e, tendo chegado a um julgamento, na nossa capacidade de convencer nossos semelhantes de que é um julgamento correto, ou na sua capacidade de nos persuadir a modificar nossos pontos de vista. Devemos depositar nossa convicção, aqui como alhures, em um consenso alcançado por homens imperfeitos e tendenciosos através do debate livre e da tentativa e erro.”
 
“O liberal teme fundamentalmente a concentração de poder. Seu objetivo é o de preservar o grau máximo de liberdade para cada indivíduo em separado - compatível com a não-interferência na liberdade de outro indivíduo. O liberal acredita que este objetivo exige que o poder seja disperso. Não vê com bons olhos entregar ao governo qualquer operação que possa ser executada por meio do mercado – primeiro, porque tal fato substituiria a cooperação voluntária pela coerção na área em questão, e, segundo, porque dar ao governo um poder maior é ameaçar a liberdade em outras áreas.”
 
“A necessidade de dispersão do poder coloca um problema especialmente difícil no campo do dinheiro. Existe uma concordância bastante ampla de que o governo deve ter alguma responsabilidade em termos de assuntos monetários. Há também amplo reconhecimento de que o controle sobre o dinheiro pode constituir instrumento importante para controlar e modelar a economia. O problema consiste em estabelecer arranjos institucionais que irão permitir ao governo exercer responsabilidade pelo dinheiro, e, ao mesmo tempo, limitar o poder que lhe é dado e prevenir que esse poder seja usado de modos que tendam a enfraquecer, mais do que fortalecer uma sociedade livre.”

“O único meio já sugerido e que parece promissor é tentar estabelecer um governo da lei em vez de um governo de homens, por meio do processo legislativo de normas para a direção da política monetária, processo este que terá o efeito de permitir ao público exercer controle sobre a política monetária por meio de autoridades políticas e, ao mesmo tempo, evitar que a política monetária seja vítima dos caprichos do dia a dia das autoridades políticas.”
 
“A liberdade individual para escolher e a competição das empresas privadas por clientes [dão] lugar ao aprimoramento dos tipos de contrato disponíveis e promovem variedade e diversidade, que vão ao encontro das necessidades individuais.”
 
“O liberal acolherá, de bom grado, medidas que promovam tanto a liberdade quanto a igualdade como, por exemplo, os meios para eliminar o poder monopolista e desenvolver as operações do mercado.”
 
“O erro central dessas medidas [de planejamento estatal da economia] reside no fato de tentarem, por meio do governo, obrigar as pessoas a agir contra seus interesses imediatos a fim de promoverem um suposto interesse geral. Tentam resolver o que se supõe um conflito de interesses, ou uma diferença de pontos de vista com relação a interesses, não por meio de uma estrutura que elimine o conflito ou tentando persuadir as pessoas a ter interesses diferentes, mas forçando as pessoas a agir contra seu próprio interesse. Substituem os valores dos participantes pelos que estão de fora; alguns dizendo a outros o que é bom para eles ou o governo tirando de alguns para beneficiar outros. Estas medidas enfrentam, portanto, uma das mais poderosas e mais criativas forças conhecidas pelo homem - a tentativa de milhões de indivíduos de defender seus interesses, de viver suas vidas de acordo com seus próprios valores. É esta a razão principal de as medidas haverem tido, tão frequentemente, efeito contrário ao pretendido. É também uma das maiores forças da sociedade livre e explica por que os regulamentos governamentais não conseguem dominá-la.”
 
“A concentração do poder não é tornada inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.”

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Contiguidade e Crença

Para abordar como relações de contigüidade podem influenciar tanto a gênese como modificações socialmente relevantes de comportamentos caracterizados como religiosos, podemos especular livremente sobre algumas possibilidades e também analisar registros históricos.

Um vulcão, num período temporalmente muito remoto, entra em erupção no território onde se situa a atual Indonésia. Uma cultura isolada de indivíduos humanos que vivem no território atualmente chamado México (imaginemos os astecas) sofre as consequências da erupção do outro lado do planeta: três anos consecutivos de invernos rigorosos devido à suspensão de partículas vulcânicas na atmosfera terrestre. Alterações no clima afetam globalmente o planeta, e a agricultura da cultura asteca é também afetada. A pouca disponibilidade de alimentos gera fome e, consequentemente, doenças. Muitas crianças morrem devido à desnutrição e doenças. Alguns cidadãos astecas com poder de decisão efetivo sobre comportamentos dos demais indivíduos (classe sacerdotal governante) observam uma proximidade temporal entre a alta taxa de mortalidade infantil e a gradual atenuação do clima, a qual é seguida pela retomada gradual da produção agrícola. Uma vez que a produção agrícola, após três rigorosos invernos, não é suficiente para alimentar a todos os cidadãos da cultura asteca, torna-se plausível para governantes com suficiente poder discricionário que o sacrifício de crianças é uma opção: acredita-se que trará atenuação do clima e melhora da produção agrícola, relação anteriormente observada, quando a morte crescente de crianças foi sucedida pela amenização gradual das intempéries climáticas.

Crianças são sacrificadas em rituais religiosamente caracterizados. O clima no território asteca melhora naturalmente após a atenuação dos efeitos globais da erupção vulcânica. O ritual de sacrifício infantil é mantido por gerações de indivíduos da cultura asteca após diminuições e aumentos intermitentes da produção agrícola, os quais necessariamente viriam a ocorrer, sendo ou não feitos sacrifícios. A possibilidade de controle da taxa de natalidade e de seus efeitos por meio de sacrifícios ritualísticos contribui para manter a prática cultural de sacrifício de crianças ao longo de gerações de indivíduos. Alguns questionam a validade efetiva do sacrifício ritualístico de seus filhos. São também mortos em rituais. Cidadãos que possuem mais recursos fazem doações substanciais aos sacerdotes e nem eles nem seus filhos são escolhidos para sacrifícios. A classe sacerdotal adquire mais e mais recursos e mantém uma lucrativa prática de extorsão. Indivíduos que afirmam que sacrifícios de crianças não mantêm relação alguma com a melhora do clima e das colheitas são condenados por heresia e também sacrificados.

É claro que tais especulações não devem ser levadas a sério. Afinal, são apenas especulações. No entanto, se tomamos registros históricos de períodos em que houve modificações sociais amplas e relevantes em comportamentos categorizados como religiosos, veremos que freqüentemente eventos ocorridos temporalmente próximos a essas modificações sociais influenciaram de modos decisivos sua ocorrência.

Segundo o historiador Eusebius de Cesaréia, o imperador romano Constantino I relata ter tido, em 312 D.C., uma visão no campo de batalha, justamente na tarde anterior a uma das batalhas decisivas que decidiriam sua ascensão rumo ao título de único imperador romano. Relata ter lido no céu a frase grega ἐν τούτῳ νίκα [Sob este sinal vencerás] e ter visto também, como a enfeitar o sol, uma cruz de fogo. Relata ter sonhado, na manhã seguinte a essa visão, com uma voz que lhe ordenava que um símbolo cristão bastante conhecido à época fosse pintado nos escudos dos soldados: a sobreposição das duas iniciais gregas da palavra Cristo – Χριστός – um X e um P sobrepostos. Ao se levantar, Constantino prontamente fez o que a voz lhe ordenara. Os soldados, que professavam o mitraísmo, religião então hegemônica, não protestaram, uma vez que também no mitraísmo era comum o uso da cruz como símbolo religioso. No evento que se tornou conhecido como a Batalha da Ponte Mílvia, Constantino e seus soldados saíram vitoriosos, massacrando os adversários. Após essa vitória, várias outras ocorreram com soldados empunhando escudos com o símbolo cristão. Os relatos sugerem que o evento ocorrido na Ponte Mílvia foi determinante para a conversão definitiva de Constantino à fé cristã, o que veio a ter desdobramentos também decisivos quanto à disseminação exponencial dessa fé, e quanto ao banimento, muitos anos mais tarde, das crenças pagãs sob o Império Romano.

Deve-se levar em conta também o fato de que Helena, mãe de Constantino, convertera-se à fé cristã ao ser abandonada por Constâncio, pai de Constantino, o que presumivelmente teve influência sobre a educação deste ainda na infância, contribuindo para sua predisposição à aceitação do cristianismo. Não se pretende aqui excluir a possibilidade de que contingências eminentemente políticas tenham levado Constantino a inventar todo o relato sobre a visão e o sonho ao historiador cristão Eusebius de Cesaréia, autor conhecido por seu propagandismo da fé cristã, ou mesmo que este último o tenha completamente inventado. No entanto, o fato de que isso possa realmente ter ocorrido parece apenas fortalecer a hipótese de que a suscetibilidade humana às contigüidades tem servido, ao longo da história, a interesses políticos, como ocorre ainda hoje. Seria digno de nota se soubéssemos que Constantino planejara cuidadosamente tornar público que seus sucessos em batalhas deveriam ser atribuídos à vontade divina e aos sinais pintados nos escudos após uma misteriosa revelação. Seria igualmente digno de nota se Eusebius de Cesaréia tivesse pretendido deliberadamente deixar tal registro, ainda que fictício, para a posteridade. Apontar relações de contigüidade e utilizá-las como táticas de amedrontamento e convencimento é algo que o animal humano possivelmente faz desde os primórdios da era em que adquiriu controle efetivo sobre os órgãos fonoarticulatórios. Esse uso deliberado de contiguidades, no entanto, só se tornaria possível caso os indivíduos que nele se engajassem já tivessem, eles próprios, sido amedrontados em relações anteriores de contigüidade.

Uma análise cuidadosa dos eventos – contingências e contigüidades – que levaram à adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano renderia muitas e muitas páginas. Situar os eventos que antecederam e sucederam mais imediatamente a Batalha da Ponte Mílvia pode nos fornecer apenas uma breve sugestão de como eventos históricos específicos e bem localizados, sob a forte influência de contigüidades, podem ser determinantes com relação a modificações amplas nos ambientes culturais humanos. É possível que o comportamento de Constantino I na tarde de 28 de outubro de 312 D.C., quando mandou que fossem pintados símbolos cristãos nos escudos de seus soldados, tenha modificado um longo encadeamento contingencial que perpassa agora meu comportamento de escrever este texto, e, logicamente, também o de quem o lê.

Resposta a um Jovem Discípulo de Lacan

Em uma discussão, um jovem lacaniano afirmava que procedimentos analítico-comportamentais de tratamento não levariam em conta a subjetividade de pessoas com desenvolvimento atípico. Espero que a resposta abaixo ajude a esclarecer esse equívoco, que costuma ser alardeado por aqueles que ignoram o que é a análise do comportamento.


Há pessoas com deficiências muito severas cujas relações com as pessoas com as quais conviveram e convivem podem contribuir de modo decisivo para que repertórios muito problemáticos sejam selecionados justamente em contextos ocorridos nessas relações.

Uma criança com uma deficiência severa que tenha tido problemas significativos ao adquirir repertório comunicativo, por exemplo, pode receber atenções imediatas ou alguma conseqüência que lhe seja agradável logo após agir de modos bastante extremos, como se agredir, gritar, jogar-se no chão etc.

Tais comportamentos extremos podem também ser consequenciados imediatamente com amenizações ou cessações de incômodos. Se a criança estiver sendo incomodada de alguma forma, pode se comportar de modos extremos, e, imediatamente, obter redução ou cessação do incômodo que esteja sendo produzido por outra pessoa.

O que nos acontece nos modifica em termos de sinapses nervosas, respostas imunológicas etc., sendo modificados, assim, também os modos como reagimos em contextos semelhantes que venham a nos ocorrer em nossa história.

Se tomamos uma vacina ou respiramos um vírus, nosso organismo passa a responder de modo diferente daquele como respondia anteriormente, mesmo que sequer cheguemos a descrever como ou quando tal modificação ocorreu.

De modo análogo ao exemplo de modificações pontuais ocorridas no chamado sistema imunológico, o que nos acontece está sempre modificando sinapses em nosso sistema nervoso, sendo modificados, assim, também os modos como respondemos aos contextos diversos de nossa história.

Não descrevemos tudo o que nos acontece e nos modifica. Não descrevemos como foram modificados os modos como respondemos ao mundo. No entanto, ainda que não sejamos capazes de descrever o que nos aconteceu e nos modificou, nosso responder é modificado. Se eu passar por você na rua amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará minha resposta de um modo diferente de como controlava antes.

Quem possui repertório descritivo pode descrever como se deram algumas dessas modificações. É muito comum que isso ocorra em terapia ou em sessões de psicanálise. Na medida em que narramos o que nos aconteceu, vamos tomando “consciência” de como viemos a nos tornar quem somos, como chegamos a pensar como pensamos, sentir como sentimos e agir como agimos.

Desse modo, podemos nos tornar capazes de fazer escolhas fundamentadas no histórico de modificações que nos ocorreram. Podemos nos tornar capazes de agir de modos muito diferentes de como vínhamos agindo, sem repetir escolhas que vinham nos trazendo sofrimento, escolhas estas cuja determinação, até então, era-nos muitas vezes totalmente inconsciente.

No caso de pessoas com deficiências severas que não adquiriram qualquer repertório descritivo, não podemos contar com descrições fornecidas pela própria pessoa. Devemos, então, basear o trabalho terapêutico em descrições fornecidas por terceiros e em observações diretas dos modos como ela age em contextos diversos de sua história. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao que chamaríamos de sua subjetividade.

A criança com um repertório de comportamentos extremos muitas vezes perde diversas oportunidades de aproveitar contextos de diversão, passeios, festas etc., pois pais e cuidadores geralmente evitam levá-la nessas ocasiões, por terem passado por dificuldades em contextos anteriores. A criança se comporta de modos extremos sob controle de conseqüências imediatas ocorridas em sua história. Ela não é capaz de descrever conseqüências que demoram a ocorrer, as quais muitas vezes lhe são muito desfavoráveis.

Compete a nós, nesses casos, descrevermos o que lhe aconteceu, o que lhe acontece e como os contextos atuais relacionam-se com seu responder atual. Essas descrições fornecerão bases para planejarmos o que lhe acontecerá para que sejam selecionados comportamentos que lhe propiciem maiores realizações e qualidade de vida.