Richard Preston, The New Yorker
Tradução: Marcus Vinícius F. de Garcia
Um dia, em setembro de 1962, uma mulher que aqui será chamada de Deborah Mörlen apareceu na sala de emergência pediátrica do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, carregando seu filho de quatro anos e meio, Matthew. Ele era espástico, e não podia andar ou sentar-se. Ainda bebê, ele tinha sido diagnosticado como tendo paralisia cerebral e retardo de desenvolvimento. A sala de emergência estava no Harriet Lane Home para Crianças Inválidas, um edifício de tijolo antigo no centro do complexo da Universidade Johns Hopkins, onde uma residente de pediatria chamada Nancy Esterly viu Matthew. Ele tinha a urina de cor estranha, disse a Sra. Mörlen à Dr. Esterly, "e há areia em sua fralda." Esterly retirou a fralda do menino. Estava manchada de um laranja profundo, brilhante, com uma coloração rosada. Ela tocou o pano e o sentiu áspero. Não tinha idéia do que era aquilo, exceto que o rosa parecia ser sangue. Ela soube através da Sra. Mörlen que Matthew tinha um irmão mais velho, Harold, que também era espástico e tinha retardo mental. Harold estava vivendo no Rosewood State Hospital. uma instituição para crianças com deficiência, fora de Baltimore, enquanto Matthew vivia em casa.
Uma vez que ambos os irmãos pareciam ter a mesma condição, Esterly acreditou ser provável que eles tivessem uma doença genética, ainda que não fosse uma que ela já tivesse visto ou ouvido falar. Esterly observou também que Matthew estava usando luvas, apesar de ser um dia quente. Ela admitiu o menino no hospital.
Esterly tomou uma amostra de urina de Matthew, e, tanto ela quanto um estagiário a examinaram com um microscópio. Eles viram que a amostra estava cheia de cristais. Eram lindos, tão claros como o vidro e pareciam feixes de agulhas ou fogos de artifício explodindo. Eram afiados, e ficou claro que estavam rasgando o trato urinário do menino, provocando sangramento. Esterly e o estagiário se debruçaram sobre fotografias de cristais em um livro de medicina. O estagiário perguntou se os cristais poderiam ser ácido úrico, um resíduo excretado pelos rins, mas cistina, um aminoácido que pode formar pedras nos rins, parecia o candidato mais provável. Esterly precisava de uma confirmação de diagnóstico, então levou ao andar de cima a amostra, onde William L. Nyhan, pediatra e cientista pesquisador, tinha um laboratório. “Bill Nyhan era o guru do metabolismo", Esterly me disse.
Nyhan, que estava então em seus trinta anos, vinha estudando como células cancerosas metabolizam aminoácidos, em uma tentativa de encontrar maneiras de curar o câncer em crianças. "Foi um dos meus projetos impossíveis", disse-me recentemente. Nyhan é agora um professor de pediatria da Universidade da Califórnia, na San Diego School of Medicine. "Eu adoro trabalhar com crianças, mas lidar com o câncer pediátrico era depressivo, triste, e, na verdade, enlouquecedor”, disse ele.
Nyhan realizou alguns testes na urina de Matthew, usando um equipamento que ele havia projetado. Os cristais não eram cistina, nem qualquer tipo de aminoácido. Comprovou-se serem ácido úrico. Uma alta concentração de ácido úrico no sangue de uma pessoa pode levar à gota, uma doença dolorosa na qual cristais crescem nas articulações e extremidades, principalmente no dedão do pé. A gota é conhecida desde os tempos de Hipócrates, e ocorre principalmente em homens mais velhos. No entanto, o paciente aqui era um garotinho. Nyhan tinha um estudante de medicina chamado Michael Lesch trabalhando em seu laboratório, e juntos eles foram ao andar de baixo.
Matthew estava em uma cama em uma enfermaria aberta no segundo andar do Harriet Lane Home. Ele era um ponto de energia na ala, uma criança de olhos brilhantes com um corpo que parecia fora de controle. A equipe havia amarrado os braços e as pernas à armação da cama com tiras de pano branco para evitar que ele se debatesse, e tinham enrolado suas mãos em muitas camadas de gaze; de modo que pareciam clavas brancas. Enfermeiros rondavam em torno do garoto. "Ele sabia que eu era um médico e sabia onde estava. Ele estava alerta", diz Nyhan. Matthew cumprimentou Lesch e Nyhan de uma forma amigável, mas seu discurso foi quase ininteligível: tinha disartria, incapacidade de controlar os músculos que produzem a fala. Eles observaram cicatrizes e feridas abertas ao redor da boca.
Eles inspecionaram os pés de Matthew. Nenhum sinal de gota. Então, os braços e pernas do menino foram liberados, e Lesch e Nyhan assistiram a um complexo padrão de movimentos rígidos e involuntários, uma condição chamada distonia. Nyhan desembrulhou e tirou as gazes das mãos do menino.
Matthew olhou assustado. Pediu a Nyhan para parar, e então começou a chorar. Quando a última camada foi retirada, eles viram que as extremidades de vários dedos do garoto estavam faltando. Matthew começou a gritar e enfiou a mão na boca. Com uma sensação de choque, Nyhan percebeu que o menino tinha arrancado com mordidas partes de seus dedos. Parecia também ter arrancado com modidas pedaços de seus lábios.
"O garoto realmente me surpreendeu", disse Nyhan. "No momento em que eu vi, soube que aquela era uma síndrome, e que, de alguma forma, todas aquelas coisas que nós estávamos vendo eram relacionadas".
Lesch e Nyhan começaram a fazer visitas regulares à enfermaria. Por vezes, Matthew chegaria a arrancar os óculos de Nyhan e arremessá-los longe. Ele tinha um arremesso poderoso, aparentemente perfeitamente controlado, e parecia mal-intencionado. "Desculpe! Sinto muito!", Matthew diria a Nyhan, enquanto este ia buscar seus óculos.
Os médicos convenceram a Sra. Mörlen a trazer seu filho mais velho para o hospital. Harold, descobriu-se, mordia os dedos ainda mais severamente do que Matthew, e tinha literalmente mastigado seu lábio inferior. Ambos os meninos ficavam aterrorizados ao ver as próprias mãos e gritavam por socorro, ainda que as estivessem mordendo. As pernas dos rapazes ficavam em posição de tesoura, e eles tendiam a arremessar um braço em uma direção e a perna na direção oposta, como um esgrimista., Os médicos descobriram que os irmãos Mörlen tinham várias vezes mais ácido úrico no sangue do que crianças normais.
Lesch e Nyhan visitaram a casa da Sra. Mörlen, uma casa geminada num bairro de classe operária em East Baltimore, onde Matthew vivia com a mãe e a avó. "Ele era um membro bem aceito em sua pequena família, e mãe e avó eram muito tranquilas com relação à condição dos garotos", diz Nyhan. As mulheres tinham planejado uma engenhoca para prevenir que Matthew mordesse as mãos. Era um cabo de vassoura acolchoado que elas colocavam sobre os ombros do garoto, amarrarando seus braços como um espantalho. A família chamou-o de “Stringly Jack". Matthew frequentemente solicitava usar essa contenção.
Lesch e Nyhan também descobriram que gostavam dos irmãos Mörlen. Lesch, que agora é presidente do Departamento de Medicina no St. Luke's-Roosevelt Hospital, em Nova York, disse: "Matthew e Harold eram realmente crianças envolventes. Eu gostava de estar por perto deles."
Dois anos após conhecerem Matthew Mörlen, Lesch e Nyhan publicaram o primeiro trabalho que descrevia a doença, a qual veio a ser chamada de síndrome de Lesch-Nyhan. Quase imediatamente, médicos começaram a enviar pacientes para Nyhan. Poquíssimos médicos já tinham alguma vez visto alguma pessoa com a Síndrome de Lesch-Nyhan, e meninos com a doença foram, e são, muitas vezes diagnosticados como tendo paralisia cerebral (meninas virtualmente não têm a síndrome). Nyhan descobriu um número considerável de meninos com Lesch-Nyhan enquanto visitava instituições do Estado para pessoas deficientes. Quando lhe perguntei quanto tempo ele levava para diagnosticar um caso, ele disse: "Segundos". E continuou: "Você anda em um quarto grande, e você está olhando para um mar de rostos sem expressão. De repente, você percebe o garoto olhando para você. Ele está muito alerta com a sua presença. Relaciona-se prontamente com desconhecidos. Está normalmente quieto em um canto, onde é o bibelô dos enfermeiros. E você vê as lesões em torno de seus lábios. "
William Nyhan tem agora oitenta e um anos, é um homem alto, com cabelo aloirado e grisalho, de olhos azuis. Ele tem um laboratório com vista para um cânion selvagem perto do UCSD Medical Center. Um dia, quando eu o visitei, dois falcões de cauda vermelha foram subindo acima do canyon, traçando círculos no ar. Nos anos que se seguiram desde que ele identificou a síndrome de Lesch-Nyhan, ele descobriu ou co-descobriu uma série de outras doenças metabólicas hereditárias, e desenvolveu tratamentos eficazes para algumas delas. Descobriu como essencialmente curar uma doença genética rara chamada deficiência múltipla de carboxilase (a qual pode matar bebês na hora do nascimento) através da administração de pequenas doses de biotina, uma vitamina do complexo B. A descoberta de um tratamento para a síndrome de Lesch-Nyhan, no entanto, revelou-se mais difícil.
Décadas depois da descoberta da Síndrome de Lesch-Nyhan, ela é ainda misteriosa. Ela é talvez o exemplo mais claro de que uma simples mudança no DNA humano pode levar a uma mudança marcante no comportamento global. Em 1971, William Nyhan cunhou o termo "fenótipo comportamental" para descrever a natureza de doenças como a síndrome de Lesch-Nyhan. Um fenótipo é uma característica externa aparente, ou um conjunto de características externas aparentes, que surgem a partir de um gene ou de genes (por exemplo, olhos castanhos). Alguém que tem um fenótipo comportamental exibe um padrão de ações características que podem ser ligadas ao código genético. A síndrome de Lesch-Nyhan parece ser uma janela para as partes mais profundas da mente humana, oferecendo vislumbres da mecânica do funcionamento do código genético operando sobre o pensamento e a personalidade.
Uma criança nascida com a síndrome de Lesch-Nyhan parece normal no início, mas, por volta de três meses de idade, mostra-se um bebê bambo, que não pode segurar a cabeça ou sentar-se. Sua fraldas podem ter areia laranja. Quando nascem seus primeiros dentes, começa a usá-los para morder a si próprio e grita de terror e dor durante as crises de automutilação. "Recebo telefonemas no meio da noite com os pais dizendo: 'Meu filho está se mastigando em pedaços, o que eu faço?’” disse Nyhan. O menino acaba numa cadeira de rodas, porque não consegue aprender a andar. À medida que ele envelhece, seus comportamentos auto-lesiivos se tornam sutis ou mais elaborados, mais tortuosos. Ele parece estar possuído por um demônio, que sempre busca novos caminhos para machucá-lo. Ele cospe, bate, xinga as pessoas que ele mais gosta. Uma maneira de dizer se um paciente de Lesch-Nyhan não gosta de você é se ele está sendo bonzinho. ("Eu apanhei certa vez de Matthew", disse-me Lesch. Ele se debruçou sobre o menino e perguntou como estava se sentindo, quando Matthew lhe deu um soco no nariz). Ele come alimentos que não tolera, vomita em si mesmo, diz que sim quando quer dizer que não. Isso é conhecido como auto-sabotagem.
Poucas centenas de rapazes e homens que vivem nos Estados Unidos hoje têm sido diagnosticados como portadores da síndrome de Lesch-Nyhan. "Eu acho que conheço a maioria deles", disse Nyhan. Um rapaz, conhecido como JJ, acabou vivendo na unidade de pesquisa de Nyhan durante um ano, quando tinha onze anos. Ele era uma criança sociável, cujas mãos pareciam odiá-lo. Ao longo do tempo, enfiava os dedos dentro da boca e nariz e tinha quebrado e removido os ossos de seu palato superior e partes dos seus seios nasais, deixando uma caverna em seu rosto. Ele também havia mordido vários dedos. J.J. morreu no fim de sua adolescência. No passado, muitos pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan morriam na infância ou adolescência, de insuficiência renal (ambos os irmãos Mörlen morreram jovens). Hoje em dia, eles podem viver até os trinta ou quarenta anos, mas geralmente são frágeis e muitas vezes morrem de infecções como pneumonia. Ocasionalmente, um homem com a síndrome pode arremessar a cabeça para trás com tanta força que chega a quebrar o pescoço. Muitos pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan morrem de repente e, muitas vezes inexplicavelmente.
Uma pessoa com Lesch-Nyhan pode ser boazinha durante dias, até que, de repente, suas mãos saltam para a boca com a rapidez de um bote de cobra, e ela grita por socorro. Pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan sentem dor tão aguda quanto qualquer pessoa, e ficam horrorizados com a idéia de seus dedos ou lábios serem mutilados. Eles se sentem como se suas mãos e boca não lhes pertencessem e estivessem sob o controle de outra coisa. Algumas pessoas com Lesch-Nyhan mastigam suas línguas, e há registo de alguns que cometeram auto-enucleação (arrancar um olho ou espetá-lo com um objeto pontiagudo). Quando o demônio de Lesch-Nyhan está cochilando, eles gostam de estar perto de pessoas, gostam de ser o centro das atenções, e fazem amizades facilmente. "Eles realmente são grandes pessoas, e eu acho que isso é parte da doença, também", disse Nyhan. Algumas pessoas com Lesch-Nyhan têm déficits cognitivos, enquanto outros são claramente brilhantes, mas sua inteligência não pode ser medida facilmente. "Como se mede a inteligência de alguém, se, quando você coloca um livro na frente dele, ele tem uma vontade irresistível de arrancar as páginas?" Nyhan perguntou.
Em 1967, Edwin J. Seegmiller, um cientista do National Institutes of Health, e dois colegas, descobriram que, em pacientes com Lesch-Nyhan, uma proteína chamada hipoxantina guanina fosforribosiltransferase, ou HPRT, que está presente em todas as células normais, parece não funcionar. O trabalho dessa enzima é ajudar a reciclar DNA. As células estão constantemente quebrando o DNA em seus quatro blocos básicos de construção (representados pelas letras A, T, C e G, para adenina, timina, citosina e guanina). Este processo produz compostos chamados purinas, que podem ser usados para formar o novo código. Se a HPRT está ausente, ou não funciona, então certas purinas formam-se nas células da pessoa, onde eventualmente são decompostas em ácido úrico, o qual satura o sangue e se cristaliza na urina.
No início da década de oitenta, um grupo de pesquisadores, liderado por Douglas J. Jolly e Theodore Friedmann, decodificou a seqüência de letras no gene humano que contém as instruções para produzir a HPRT. Ela inclui 657 letras que codificam a produção da proteína. Os pesquisadores também iniciaram o seqüenciamento desse gene em pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan. Cada uma delas tinha uma mutação no gene, mas, curiosamente, quase todas tinham mutações diferentes, não havendo uma única mutação que causasse a síndrome. As mutações aparentemente apareceram espontaneamente em cada família afetada. E, na maioria dos casos, o defeito consistia em apenas um erro em uma letra do código. Por exemplo, um garoto americano conhecido como D.G. tinha um único G substituído por um A - apenas uma das três bilhões de letras no código do genoma humano. Como resultado, ele se mutilava.
O gene HPRT é encontrado no cromossomo X. As mulheres têm dois cromossomos X em cada célula, e os homens têm um par XY. A síndrome de Lesch-Nyhan é uma desordem recessiva ligada ao cromossomo X. Isso significa que se um gene HPRT ruim em um cromossomo X é combinado com um gene normal no outro cromossomo X, a doença não se desenvolve. Uma mulher que tenha a mutação de Lesch-Nyhan a carrega em apenas um dos seus cromossomos X. Assim, ela não desenvolve a síndrome. Qualquer filho que ela tenha, no entanto, terá cinqüenta por cento de chance de herdar a síndrome, e qualquer filha terá cinquenta por cento de chance de ser uma portadora da mutação. (Exemplos deste tipo de doença são a hemofilia e uma forma de daltonismo vermelho-verde).
Outras mutações genéticas têm sido associadas a profundas mudanças comportamentais. A síndrome de Rett, que afeta principalmente as meninas, é causada por uma mutação em um gene que codifica a proteína MeCP2. Pessoas com a síndrome esfregam compulsivamente as mãos como se fossem lavá-las. Crianças com síndrome de Williams têm uma aparência de elfo, afinidade com a música e a linguagem e uma extrema sensibilidade ao som, sendo muito sociáveis. A síndrome de Williams é causada pela ausência de um trecho de código do cromossomo 7. Há ainda uma grande incerteza, porém, sobre que papel os genes desempenham em condições importantes tais como depressão, transtorno bipolar e transtorno de personalidade borderline. Mesmo quando há evidências de uma história familiar da doença, cientistas estão incertos sobre como um único gene pode coreografar um conjunto de comportamentos. Há cerca de vinte e cinco mil genes ativos no genoma humano, cada um com cerca de mil a mil e quinhentas letras de código. O genoma pode ser pensado como uma espécie de piano com vinte e cinco mil teclas. Em alguns casos, algumas teclas podem estar desafinadas, o que pode fazer a música soar mal. Em outros, se uma tecla está ausente, a música se transforma em uma cacofonia, ou o piano todo se auto-destrói.
Os estragos que as mutações de Lesch-Nyhan causam não podem ser facilmente desfeitos. Logo no início, Nyhan tentou dar alopurinol a seus pacientes, uma droga que inibe a produção de ácido úrico e é eficaz no tratamento da gota. Ele abaixou a concentração de ácido úrico em pacientes com síndrome de Lesch-Nyhan, mas não reduziu seus comportamentos auto-lesivos. O ácido úrico parecia ser um outro sintoma e não uma causa do comportamento. Nyhan tem experimentado outros tratamentos, tais como restrições leves, que parecem relaxar os pacientes, e a remoção de certos dentes. "Estou dissoluto com esses dentes superiores", disse Nyhan. Alguns dentistas, no entanto, recusam-se a extrair dentes saudáveis, mesmo quando a síndrome de Lesch-Nyhan é explicada a eles.
Eu disse a Nyhan que não poderia imaginar o que seria viver com a doença. "Você pode perguntar a alguém que a tenha", respondeu ele.
Conheci James Elrod e Jim Murphy no inverno de 1999. Eles estavam vivendo próximo um do outro em bangalôs alugados em um bairro um tanto marginal em Santa Cruz, Califórnia. Elrod estava, então, em seus quarenta anos, e Murphy tinha pouco mais de trinta (Murphy morreu em 2004.. Elrod, que hoje tem quarenta e nove anos, é uma das pessoas mais velhas com a síndrome de Lesch-Nyhan). Os homens eram clientes da Mainstream Support, uma empresa privada contratada pelo Estado da Califórnia para ajudar pessoas com deficiências de desenvolvimento que vivem em ambientes comunitários. Antes de James Elrod vir para Santa Cruz, viveu por dezoito anos em uma instituição estatal de San Jose. Murphy tinha vivido a maior parte de sua vida em uma instituição em Sonoma. Profissionais da Mainstream, chamados de Equipe de Cuidados Diretos, ficaram com Elrod e Murphy em torno da hora marcada para nosso encontro, para ajudá-los com as tarefas diárias e para se certificarem de que eles não se machucariam. Elrod e Murphy tinham autoridade para contratar e demitir seus assistentes e direcionar seus trabalhos, apesar de assistentes poderem recusar pedidos se julgassem que poderiam colocar o cliente em situações de perigo.
Naquela época, a Mainstream era gerida por dois homens chamados Andy Pereira e Steve Glenn. "James e Jim são verdadeiros caras que têm altos e baixos", disse Pereira, na primeira vez em que conversei com ele. "Eles não são tipos dóceis. Eles se interessam por carros velozes e mulheres.". Glenn disse que ainda tinha dificuldade em ver-se no labirinto de Lesch-Nyhan. "Existem esses momentos de Lesch-Nyhan, quando você sente que parece que entendeu a coisa", disse ele. James e Jim são muito bons em nos contar quando pensam que estão em perigo de machucar a si prórpios, mas, sempre que eles estão fazendo alguma coisa, você tem que perguntar: é James ou Jim, ou é Lesch-Nyhan? ".
James Elrod tem um rosto quadrado, de boa aparência, que está marcado com cicatrizes, e olhos castanhos hiperalertas. Seus ombros e braços são grandes e poderosos, mas o resto do seu corpo parece um pouco reduzido. Certo dia, antes de ele estar na Mainstream, uma atendente deixou-o sozinho na hora do jantar por alguns minutos. Para horror de Elrod, sua mão esquerda pegou um garfo e usou-a para perfurar seu nariz e arrancá-lo, mutilando permanentemente seu rosto. "O meu lado esquerdo é o meu lado diabo", ele me disse. Quando o conheci, ele usava luvas de couro preto, de motociclista, que tinham sido reforçadas com Kevlar. Se ele pensava que sua mão esquerda estava o ameaçando ou a outra pessoa, ela a segurava ou batia nela com a mão direita. Ele é dono de uma picape e seus assistentes o levam nela aos arredores. Costumava vender flores no cais de Santa Cruz, e leva cartões explicando que tem uma doença rara que o compele a se machucar. “Tenho me machucado de várias formas, incluindo o nariz, como você pode ver", diz o cartão. "Vou até mesmo tentar me machucar por me meter em encrencas com os outros". Um dia, um homem comprou flores de Elrod e disse: "Deus te abençoe". "Coma merda", respondeu Elrod, e entregou ao homem o seu cartão de visita. Ao atravessar ruas em sua cadeira de rodas, Elrod tem sido conhecido por tentar rolar da cadeira em meio ao trânsito, gritando "Vão devagar, seus idiotas! Vocês não sabem o que é síndrome de Lesch-Nyhan?". Seus assistentes engalfinham-se com ele e o colocam em segurança.
Elrod estava sentado em frente a sua casa em sua cadeira de rodas quando cheguei. Era um dia ensolarado. Ele me ofereceu sua mão direita para cumprimentar. Quando apertei sua luva, o dedo indicador direito estava faltando. "Você quebrou meu dedo!" ele engasgou. Então sorriu e explicou que não tinha esse dedo. "Algumas pessoas ficam tristes quando faço isso", disse ele. "As crianças adoram. Querem quebrar o meu dedo novamente."
Nós conversamos por um tempo. "Ei, Richard, perigo", disse ele.
"O que há de errado?"
Ele cuidadosamente apontou para o lápis que eu estava usando para tomar notas. "O lápis está me assustando. Minha mão poderia agarrá-lo e colocá-lo no meu olho", disse ele. "É melhor você ir ver o meu vizinho."
Jim Murphy estava sentado em sua cadeira de rodas em uma mesa na sala de sua casa e um assistente chamado Michael Roth cortava panquecas e o alimentava com uma colher. Murphy era um homem esqueleticamente magro, com cabelos escuros e um rosto magro, bonito. Ele tinha um cavanhaque bem aparado e um corte de cabelo de exército. Seus olhos eram instáveis e seu olhar sensível. Os lábios estavam faltando. Dois de seus irmãos também haviam tido síndrome de Lesch-Nyhan e tinham morrido quando ainda eram jovens. "Jimmy será tímido quando você encontrá-lo", uma de suas irmãs me disse ao telefone. Alertou, no entanto, que eu deveria esperar ouvir um monte de xingamentos e palavrões. "Ele não pretende dizer essas coisas", disse ela. "Quando ele me xinga, eu apenas digo 'Eu também te amo’".
Naquele dia, em Santa Cruz, Murphy ficou me olhando com o canto dos olhos, com a cabeça jogada para trás e involuntariamente afastou-se, apoiado contra o encosto de cabeça de sua cadeira. Suas mãos estavam enfiadas em muitos pares de meias brancas e seu peito arfava de encontro a uma correia de borracha que o mantinha preso. Ele começou a dar murros e chutes em minha direção. Parecia estar suportando sua doença como um homem montado num cavalo selvagem. A cadeira de rodas tremeu.
Mantive distância. "Prazer em conhecê-lo", eu disse.
"Foda-se. Prazer em conhecê-lo". Murphy tinha uma voz embriagada, mas de sonoridade agradável. Sua fala foi muito difícil de entender. Ele olhou para Roth. "Estou nervoso", disse ele.
"Você quer ser contido?" Roth perguntou.
"Sim".
Roth colocou os pulsos e tornozelos de Murphy em tiras de tecido macio presas com velcro.
"Estou um pouco nervoso também" eu disse, e sentei-me no sofá.
"Eu não me importo. Tchau".
Eu me levantei para sair.
Roth explicou, no entanto, que essa era uma daquelas situações de Lesch-Nyhan, onde as palavras significam o oposto.
Mais tarde, Murphy tentou me dizer como era sua doença. "Você tenta expulsar todos de perto de você e então você se sente mal quando faz isso", disse ele. "Se você chegar muito perto de mim, eu poderia...", disse ele. O final foi indecifrável.
"Desculpe, o quê?"
"Poderia te dar um cascudo, Richard. Eu diria: 'Traga minha água', e te daria um soco quando você trouxesse."
Um par de luvas de boxe vermelhas estão penduradas na parede. Todos os dias, seus assistentes o colocam em uma esteira no chão, onde ele rola e faz alongamentos e depois pratica boxe com eles. "Eu poderia nocauteá-lo, definitivamente", ele me disse. Eu não duvidei.
Foram realizadas cerca de vinte autópsias de pacientes com Lesch-Nyhan ao longo dos anos. Seus cérebros pareciam ser perfeitamente normais. "É um problema nas ligações, na forma como o cérebro funciona", disse H. A. Jinnah, neurologista do Johns Hopkins. Durante algumas das autópsias, os médicos testaram amostras de tecidos do cérebro para ver se eles continham níveis normais de neurotransmissores, substâncias químicas que atuam entre as células nervosas. Nos cérebros de pessoas com Lesch-Nyhan, uma área do tamanho de um limão que contém estruturas denominadas gânglios basais, perto do centro do cérebro, tinha oitenta por cento menos dopamina - um neurotransmissor importante - do que um cérebro normal. Os gânglios basais são ligados em circuitos que funcionam em todo o cérebro e afetam uma ampla gama de funções: controle motor, pensamento de nível superior e movimento dos olhos, bem como o controle do impulso e o entusiasmo.
"Pessoas com síndrome de Lesch-Nyhan têm um número excessivo de movimentos involuntários", disse Jinnah. "É como se eles estivessem pisando no acelerador com muita força quando tentam fazer alguma coisa. Se você lhes pede para olhar para uma bola vermelha, por exemplo, os olhos apontam para todos os lugares, exceto para a bola vermelha, e eles não podem explicar por que. Então, se você introduz uma bola amarela em seu campo de visão, mas você não diz nada sobre isso, eles olham para a bola amarela. No momento em que você chamar a sua atenção a ela, porém, eles desviam o olhar.”
"A síndrome de Lesch-Nyhan é o ponto extremo de um espectro de comportamentos auto-lesivos", Jinnah prossegue. "Todos nós fazemos coisas que são ruins para nós. Nós vamos sentar em frente à televisão e comer um litro de sorvete. Nós todos temos impulsos auto-lesivos, também. Ao dirigir um carro, nós podemos ter um impulso estranho de conduzi-lo de maneira errada e espatifá-lo em alguma coisa. "Edgar Allan Poe chamou essas inspirações de "o diabinho do perverso." O diabinho podem ser sinais que saem dos gânglios da base. As pessoas normais sentem os sussurros do diabinho, mas na maioria das vezes elas não agem de acordo com eles. A síndrome de Lesch-Nyhan pode sugerir uma forma na qual o pensamento original e as idéias parecem surgir como impulsos que não são reprimidos, e quão próximo é o terreno entre a criatividade e a auto-destruição. "Muitas pessoas roem as unhas", disse Jinnah. "Eles vão dizer que é ruim e que não querem fazê-lo. Elas dirão ‘Às vezes eu fico nervoso e começo a roer minhas unhas’. Há pessoas que mordem os lábios nervosamente. Agora, vamos aumentar um pouco o volume: algumas pessoas roem as cutículas. Aumente o volume um pouco mais...: algumas pessoas roem as cutículas até sangrar. Agora, vamos aumentar muito o volume: você tem alguém mordendo os tecidos e ossos em seus dedos, mordendo o dedo todo e mastigando os lábios, chegando até a arrancá-los . Onde, nesse espectro de comportamento, está o livre arbítrio? "
De certa forma, a síndrome de Lesch-Nyhan parece a doença de Parkinson revertida. Pessoas com Parkinson têm dificuldade de iniciar ações físicas, e diz-se que são hipocinéticas. Pessoas com Lesch-Nyhan iniciam ações com muita facilidade e não podem parar uma ação quando ele começa. Diz-se que são hipercinéticas. Como a doença de Parkinson é também associada a uma deficiência de dopamina nos gânglios da base, os cientistas olham para cada doença em busca de pistas para a outra.
Em 1973, um pesquisador chamado George Breese, da Universidade North Carolina School of Medicine, estava trabalhando com ratos nos quais modelaram a doença de Parkinson. Ele estava tratando ratos recém-nascidos com compostos que alteraram os níveis de dopamina no cérebro, quando, para sua surpresa, os ratos começaram a morder as patas. Ele tinha inadvertidamente criado um rato com sintomas da síndrome de Lesch-Nyhan. "Eu não vou aprofundar os detalhes do que os ratos estavam fazendo. Eles não estavam mordendo seus tecidos da boca, à maneira como os pacientes humanos fazem", disse-me Breese. Se ele desse aos ratos que exibiam comportamentos auto-lesivos um outro composto, eles paravam de morder as patas, ou seja, ele encontrou uma forma de reverter os sintomas. "Nós tratamos o rato no momento em que vimos o animal produzir o primeiro ferimento em suas patas", disse ele. O composto, no entanto, nunca foi aprovado para uso em humanos.
Em abril de 2000, uma neurocirurgiã da Tokio Women’s Medical University, chamada Takaomi Taira, realizou uma cirurgia no cérebro de um homem de dezenove anos de idade com síndrome de Lesch-Nyhan. O jovem estava morando com seus pais em um distrito ao norte de Tóquio. Além de exibir comportamentos auto-lesivovos, ele tinha os movimentos espásticos, duros e desajeitados da distonia. "Estes movimentos distônicos foram ficando mais graves, durando quase dias inteiros, e seus pais estavam desesperados", disse Taira recentemente. Decidiu-se realizar um procedimento conhecido como estimulação cerebral profunda (deep-brain stimulation) para tentar acalmar os movimentos.
A estimulação cerebral profunda foi desenvolvida por médicos há mais de vinte anos para tratar pessoas com doença de Parkinson. Um ou mais fios finos são inseridos através de aberturas no crânio e são cuidadosamente guiados através do cérebro até parar em uma parte dos gânglios basais chamada globus pallidus (globo pálido). Os fios são conectados a uma bateria, que é implantada sob a pele do peito do paciente e uma fraca corrente pulsante de energia elétrica percorre até o globo pálido, entorpecendo um ponto do tamanho de uma ervilha. O paciente não sente nada. O procedimento com freqüência ajuda a acalmar os tremores nas mãos e membros de pacientes com Parkinson, ajudando-os a andar com mais facilidade.
"Após a cirurgia, o movimento distônico do menino desapareceu completamente", disse Taira. Ele o mandou para casa com o estimulador cerebral profundo, sentindo que a operação tinha ajudado. Vários meses depois, os pais do jovem disseram a Taira que ele tinha parado de se morder. Ele ainda estava em uma cadeira de rodas e seus níveis de ácido úrico mantiveram-se elevados, mas estava lendo quadrinhos e assistindo televisão, e parecia estar aproveitando a vida como nunca antes. "Foi completamente inesperado, extraordinário, quase inacreditável", disse Taira. Alguns anos mais tarde, o jovem de repente começou a morder novamente as mãos e os pais o trouxeram de volta. "Eu chequei o aparelho e constatei que a bateria estava fraca. Troquei a bateria e seus sintomas foram controlados de novo", disse Taira.
Um grupo de pesquisa em Montpellier, na França, liderado por um neurocirurgião chamado Philippe Coubes, realizou implantes de estimulação cerebral profunda em cinco pacientes com Lesch-Nyhan. Seu método envolve a inserção de quatro fios até o cérebro. "Até agora, temos três pacientes que estão evoluindo muito bem e dois que estão tendo uma resposta intermediária - a resposta de um desses não é ruim, mas não é tão boa quanto as dos outros", disse Coubes. "Eu não estou certo de que seremos capazes de controlar todos os seus comportamentos a longo prazo, mas estamos no processo de obtenção de uma melhor compreensão da estimulação cerebral profunda para estes pacientes." O “diabinho do perverso” pode ser posto para dormir, mas ninguém sabe como fazê-lo ir embora.
Os cientistas não sabem ao certo porque a estimulação cerebral profunda parece funcionar em alguns pacientes, ou se ela pode ajudar os outros. Na verdade, os resultados são um lembrete de quão ocultos ainda são os funcionamentos do cérebro. Também não são claros os riscos envolvidos. William Nyhan foi cauteloso sobre o potencial do procedimento: "Eu vejo esses garotos como frágeis, e eles não respondem muito bem a invasões cirúrgicas", disse ele.
No Johns Hopkins, no entanto, Jinnah estava ansioso para começar um estudo sobre um grupo de pelo menos oito pacientes com Lesch-Nyhan, usando estimulação cerebral profunda. Ele ainda precisa garantir o financiamento e obter aprovação do governo federal. (O processo não foi aprovado especificamente para pacientes com Lesch-Nyhan).
Jinnah nunca teve facilidades para obter financiamento e atenção para a investigação sobre Lesch-Nyhan. Ele diz: "As pessoas me perguntam: 'Por que não estudar as doenças mais comuns? Minha resposta é que se nós, neurologistas, o fizéssemos, todos nós estaríamos estudando doença de Alzheimer, doença de Parkinson e acidentes vasculares. Existem milhares de outras doenças cerebrais por aí, e todos elas são órfãs. Mas estas doenças raras podem nos ensinar algo novo sobre o cérebro, algo relevante para as doenças comuns do cérebro que afetam tantas pessoas. "
Voltei várias vezes para visitar James Elrod e Jim Murphy, e comecei a ajudar sua equipe com as tarefas diárias. Elrod cuspiu na minha cara algumas vezes, e me deu um jab de esquerda no queixo. Certa vez, seus dedos cobertos por tecido Kevlar apertaram minha pele como alicates. Ele se desculpou enquanto nós dois trabalhávamos para soltá-los. Murphy, em sua festa de trigésimo terceiro aniversário, enfiou o rosto em seu bolo e depois me deu um soco. No entanto, passei a gostar muito deles. Murphy tinha uma paixão por corridas off-road, paixão esta que ele não era geralmente capaz de saciar. Um dia, em 2001, apareceu em Santa Cruz em uma Ford Expedition alugada com tração nas quatro rodas. Uma assistente nomeada, Tracye Overby, estava com Murphy, enquanto outro, chamado Chris Reeves, foi designado para Elrod. Eu dirigi o grupo para um leito de lago seco perto de Watsonville chamado College Lake, que tínhamos ouvido falar que era um bom lugar para dirigir um quatro-rodas. No caminho, parei para pedir informações a um soldado do estado da Califórnia. "Eu não aconselho ir até lá com pessoas com deficiência", disse ele.
College Lake era uma extensão de milhas de largura de barro escorregadio, coberto com areia. O leito do lago possuia um centro escuro e úmido cercado por bosques de salgueiros. Eu dirigi a Expediction para a areia. "Mais rápido", disse Murphy. "Você está dirigindo como uma senhorinha velha." Eu liguei o motor, a Expediction saltou para a frente e correu pela areia. Quando o carro virou bruscamente, o homem gritou de alegria. Eu executei uma manobra de oito em seguida, direcionando o veículo ao centro do lago à plena potência. Passamos a carcaça de um velho caminhão submerso, enterrado até o topo no barro. A Expediction reduziu a velocidade. Em seguida, começou a tombar e percebi que estava dirigindo no que se pode chamar de lodo. Se freiasse, nós iríamos rodar. Eu pisei no acelerador, mas já era tarde demais. As rodas começaram a girar, chegamos a um momento de impasse e o carro afundou até as portas, quando o motor parou.
Houve um momento de silêncio e, em seguida, Elrod e Murphy entraram em erupção com palavrões dirigidos a mim. Os dois ajudantes pareciam impassíveis. "Esta é apenas a natureza do nosso trabalho", afirmou Reeves. "Tudo o que você planeja nunca acontece como você planejou".
Depois de várias tentativas em meu celular, cheguei a uma empresa de reboque que estava disposta a tentar nos tirar de lá, mas teria de ser pago antecipadamente, de preferência em dinheiro, e sem resultados garantidos.
"Estou nervoso", disse Murphy, enquanto esperávamos. O sangue escorreu de sua boca, ele estava mordendo a si mesmo. Overby o tirou do carro, levou-o para a areia na sombra de alguns salgueiros e sentou-se, segurando-o no colo. Ela limpou a boca de Murphy com um guardanapo, embalou sua cabeça nos braços e começou a cantar com ele. Ele começou a rir.
Elrod, sentado no banco da frente da Expediction, começou a rir também. Os homens eram conhecedores do que eu tinha feito: eu tinha ignorado o conselho de um policial e levado dois homens deficientes em alta velocidade na lama. Eles viram algo familiar no meu comportamento.
Três anos depois, em 2004, Murphy estava com pneumonia. Quando ficou claro que ele estava morrendo, eu liguei para ele para dizer adeus. Logo que ele entrou na linha, eu podia ouvir vozes ao fundo, mais de trinta pessoas tinham ido para vê-lo. "Eu vou ficar bem", disse ele, e acrescentou: "Tome cuidado com a condução."
Num outro dia, antes de Murphy morrer, eu tinha visitado James Elrod. Tracye Overby, que estava trabalhando como assistente de Elrod, teve que mudar os forros de seda que ele usava dentro de suas luvas de moto.
Elrod não gostava de ver as próprias mãos. Ele me pediu para segurar seus pulsos enquanto Overby tirava as luvas. As mãos que surgiram eram pálidas, com dedos magros que tinham sido roídos perto do osso em alguns lugares, e um dedo estava faltando. "Perigo", disse ele. Seus olhos ganharam um estranho olhar brilhante e branco. Ele estava olhando para a mão direita. Seu braço estava tenso e trêmulo. Como se estivesse sendo puxada por um ímã, a mão se moveu na direção de sua boca. "Ajuda! ", ele chamou com uma voz abafada.
Nós nos jogamos sobre Elrod. Precisamos de toda a nossa força para conter sua mão. Tão logo nós tivemos o controle dela, ele relaxou. Overby colocou as luvas novamente.
"Ninguém sabe sobre esta doença. Todo dia eu estou esperando por uma cura", disse Elrod. "Eu queria que você visse isso".