sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Comportamento Autolesivo: Psicanálise e Análise do Comportamento

Reproduzo abaixo trechos de meus argumentos em uma discussão recente que tive com uma psicanalista (reproduzo apenas meus argumentos, mas alguns trechos sugerem o teor da argumentação de minha interlocutora):

No prontuário de uma criança de dez anos com um transtorno autístico severo, cujo atendimento iniciei em março de 2012, constam registros sessão a sessão de um tratamento anterior, realizado por dois anos por um profissional que adota orientação teórico-clínica psicanalítica.

A criança começou a exibir as topografias autolesivas de dar tapas na própria cabeça e bater a cabeça no chão no primeiro dos dois anos do tratamento psicanalítico. Os problemas continuaram no restante do tratamento. Nos registros de prontuário, há relatos que considero injustificáveis, como, por exemplo, o procedimento de imitar a criança quando ela dava tapas na cabeça. Fico imaginando a cena: a criança começa a se dar tapas na cabeça e o profissional começa também a dar tapas na própria cabeça...

Realizei uma avaliação funcional dos comportamentos autolesivos com métodos indiretos e descritivos (entrevistas e observação direta). Após 15 dias, depois de aumentos iniciais previstos, sobre os quais os familiares haviam sido devidamente alertados, a criança parou de dar tapas na cabeça e de bater a cabeça no chão, iniciando comportamentos alternativos em contextos de comunicação nas relações sociais, resultado que se mantém ainda hoje, após nove meses da intervenção, na qual foram utilizados procedimentos de extinção e reforçamento diferencial de comportamentos alternativos.

Lendo os registros de prontuário do profissional psicanalista, além do absurdo da imitação do comportamento autolesivo, fica evidente também que ele contribuiu para manter o comportamento autolesivo da criança, ao consequenciar com atenção imediata principalmente a topografia bater a cabeça no chão, de modo muito semelhante a como a mãe da criança vinha fazendo. Além disso, havia o encaminhamento para avaliação psiquiátrica, ou seja, para se avaliar o uso de medicações psicotrópicas, coisa que sequer passou pela minha cabeça quando avaliei o caso (e há aqueles que teimam em alardear que analistas do comportamento são mancomunados com a indústria farmacêutica!).

Quando relatei ao profissional psicanalista os rápidos resultados da intervenção com a criança, ele respondeu: "Mas, também, houve uma base boa anterior". Acho difícil que consigam imaginar minha expressão facial na hora...

Quando perguntei ao psicanalista o que afinal ele pretendia com a imitação do comportamento autolesivo, ele me respondeu que pretendia "produzir um estranhamento da criança". Independente do que ele tenha produzido, o que fica patente é que ofereceu um tratamento não apenas ineficaz, mas também possivelmente iatrogênico.

Intervenções analítico-comportamentais podem ajudar uma pessoa com um transtorno autístico severo a se comunicar melhor, de modo que ela se sentirá mais livre para fazer escolhas em sua vida, seja para realizar trabalhos artísticos ou para fazer qualquer outra coisa que venha a escolher.

Um terapeuta analista do comportamento não irá determinar do que a pessoa gostará ou deixará de gostar. Ele apenas trabalhará para que essa pessoa venha a se tornar capaz de escolher por si própria.

Convenhamos que uma pessoa que tenha um repertório comunicativo tão precário, a ponto de ela ter que apelar para comportamentos autolesivos diante de situações sociais corriqueiras de seu cotidiano, não deve se sentir muito livre. Ampliar o repertório comunicativo dessa pessoa é tornar essa pessoa mais livre.

Fico triste ao ver que rivalidades teórico-clínicas, justificadas no campo político e de interesses, mas injustificáveis no campo ético, parecem impedir o reconhecimento amplo de metodologias terapêuticas tão importantes como a avaliação funcional.

A expressão avaliação funcional se refere amplamente a todos os métodos utilizados para inferir ou identificar funções comportamentais. Ela compreende todo o conjunto de métodos que visam ao levantamento de dados. Tais métodos podem ser:

1- Indiretos (entrevistas iniciais com familiares, professores e cuidadores);

2- Descritivos (observação direta e registro);

3- Experimentais (análise funcional, que envolve a manipulação de variáveis e pode confirmar ou descartar hipóteses baseadas em métodos indiretos e descritivos de avaliação).

Em uma avaliação funcional, buscamos descrever recortes da história de relações entre a pessoa e o ambiente, pois tais relações precedentes são responsáveis por como ocorrem seus comportamentos diante dos contextos atuais. São feitas descrições de contextos e conseqüências do comportamento que está sendo avaliado, buscando-se, assim, a identificação das conseqüências que o mantêm.

Quanto aos seus questionamentos sobre o caso específico que relatei, tentarei também responder de modo breve. De acordo com os resultados da avaliação funcional, a criança batia a cabeça e produzia atenção ou acesso a itens de interesse. Com base nessa hipótese, foi planejada uma intervenção em que o comportamento da criança de bater a cabeça não mais produziria as conseqüências que anteriormente vinha produzindo. Ocorreu então um processo comportamental denominado extinção, que envolve aumentos iniciais da taxa de respostas e reações emocionais típicas de frustração. Tais aumentos iniciais foram sucedidos pela diminuição dos comportamentos. Foi realizado também o reforçamento diferencial de comportamentos alternativos, que envolveu consequenciar com atenção e acesso a itens de interesse outras respostas da criança, como, por exemplo, puxar a barra da blusa da mãe ou tocar no braço do terapeuta ou da educadora. Tais procedimentos podem ser também chamados de treino de comunicação funcional. Ressalto aqui que a criança não fala e possui repertório comunicativo muito precário. Trata-se de um caso de deficiência severa.

Devo dizer que os adjetivos "simplistas" e "risíveis" certamente não se aplicam à intervenção e aos procedimentos de tratamento realizados com a criança. Na verdade, mesmo com os resultados rápidos, foi uma intervenção que teve continuidade ao longo de nove meses, sendo precedida por um intenso acompanhamento terapêutico com a mãe da criança, para que ela viesse a lidar melhor com o que sentia diante dos comportamentos extremos exibidos pelo filho. Este trabalho terapêutico inicial com a mãe contribuiu para o aumento das chances do engajamento desta à proposta de intervenção, que, como dito anteriormente, envolvia aumentos iniciais previstos do comportamento autolesivo da criança.

Foram feitas orientações à mãe e ao pai da criança, à professora, à auxiliar de sala de aula, ao diretor da escola. Tal trabalho amplo de orientações sobre a intervenção foi necessário para que todos viessem a agir em conjunto, compreendendo-se mutuamente. Enfim, foi uma mão de obra danada.

Não considero de modo algum que se trate de arrogância tentarmos descrever relações entre o que fazemos no mundo e mudanças que produzimos no mundo. Na verdade, é bastante possível que isso seja feito de modos até humildes.

Sua pergunta sobre a ocorrência ou não de transtornos autísticos entre povos indígenas pode ser respondida ao respondermos outra pergunta. Existe meningite entre povos indígenas? Sabemos que sim. Sabemos também que há casos de transtornos autísticos cuja etiologia é relacionada a lesões neurológicas decorrentes de meningite. Portanto, obviamente podemos dizer que existem transtornos autísticos entre povos indígenas. Se você ainda tiver dúvidas a respeito, pode buscar dados epidemiológicos sobre a incidência de transtornos autísticos em grupos étnicos específicos.

Há muito desconhecimento mútuo entre pessoas que adotam diferentes orientações teórico-clínicas. Devemos buscar conhecer, senão apenas repetimos o que ouvimos de pessoas que, muitas vezes, estão ainda menos informadas do que nós.

Deixo aqui o epílogo de um livro de um psicólogo e analista do comportamento que morreu recentemente, num acidente provocado por um motorista bêbado.

Edward G. Carr era um cara altamente crítico ao uso de psicotrópicos em casos de problemas de comportamento. E ainda há quem acuse analistas do comportamento de serem mancomunados com a indústria farmacêutica... Nada mais despropositado!

Há um vídeo de uma palestra dele no YouTube (escute a fala de Carr, aos 21:28 do link abaixo, sobre a tão aclamada risperidona):


Epílogo do livro Communication-Based Intervention for Problem-Behavior: a User's Guide for Producing Positive Change:

"É lamentável que, para muitas pessoas com deficiência, apresentar severos problemas de comportamento seja uma maneira importante, às vezes a única maneira, de influenciar os outros. Por isso, é fundamental não concentrarmos esforços em apenas eliminar comportamentos problema, mas sim em substituí-los por novos comportamentos socialmente aceitáveis, que sirvam aos mesmos propósitos que os comportamentos problema, mas de modo mais eficiente. Através da educação, as pessoas com deficiência podem entrar em relações sociais que se caracterizam não por controle, mas por reciprocidade, não por passividade, mas por participação, e não sendo uma categoria, mas sendo um amigo."

Link para a discussão original:

http://www.redehumanizasus.net/59327-saude-mental-em-sao-paulo-ameacada-de-perder-mais-um-servico-importante