Disponibilizo no link abaixo a tradução de um artigo clássico da literatura analítico-comportamental sobre comportamento auto-lesivo:
http://www.4shared.com/document/rMU5fV5I/A_Motivacao_de_Comportamentos_.html
Link para o original em inglês:
The Motivation of Self-Injurious Behavior: a Review of Some Hypotheses
http://www.accesspointkids.com/uploads/Carr_1977_-_Self_Injurious_Behavior.pdf
Ainda que o foco do artigo não seja especificamente voltado ao tratamento, mas à identificação de variáveis relacionadas a auto-lesivos, espero que a tradução ajude a disseminar a informação de que há tratamento para esse problema grave que afeta muitas pessoas com deficiências de desenvolvimento.
Após 1977, data de publicação do artigo de Edward G. Carr, houve a publicação de muitos e muitos artigos com descrições detalhadas de avaliação e tratamento. Para aqueles que se interessarem por esses avanços obtidos por analistas do comportamento nas últimas décadas, sugiro uma consulta ao Journal of Applied Behavior Analysis - JABA - com os termos "self-injurious" e "self-injury", no link abaixo:
http://seab.envmed.rochester.edu/jaba/jabaindx.asp
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
São incompatíveis a proposta de planejamento cultural de Skinner e o liberalismo econômico?
Milton Friedman operacionaliza liberdade em muitos momentos como ausência ou diminuição de coerção, argumento já abordado e ampliado nas análises de Skinner sobre o uso também do reforço positivo como estratégia de controle de agências governamentais.
Não creio que haja incompatibilidade entre o liberalismo econômico e as propostas skinnerianas de planejamento cultural e "diversificação planejada", sobretudo aquelas apresentadas em Beyond Freedom and Dignity. Teríamos talvez que aparar alguns excessos ideológicos, tanto de Friedman quanto de Skinner.
Considero que análises funcionais podem contribuir muito para o planejamento do que Friedman chamava de "um governo da lei ao invés de um governo de homens" e das "normas ao invés de autoridades". Fazer boas leis e normas exige, sobretudo, descrição de contingências e modificação de novas contingências.
O conceito de liberalismo se tornou um espantalho em debates, os quais são levados a cabo muitas vezes por pessoas que não leram uma linha sequer sobre registros históricos da gênese da ideologia liberal. Cria-se um liberalismo espantalho, que nunca existiu, dá-se a ele o nome de "neo-liberalismo" e começa-se a atacá-lo.
A ideologia que se tornou historicamente conhecida como liberalismo econômico não surgiu em contextos em que pessoas defendiam a ausência de normas ou de qualquer tipo de regulação da economia, como muito se tem dito. Na verdade, defendiam normas coletivamente negociadas entre cidadãos diversos que produziam riqueza, praticavam comércio, vendiam sua força de trabalho, em suma, que negociavam entre si das mais diversas formas.
O liberalismo econômico surgiu ainda antes de Adam Smith, em contextos de descentralização de poder em culturas sob regimes monárquicos, nas quais pequenas classes dirigentes ditavam normas a serem seguidas por muitos na prática da negociação e do comércio. Normas ditadas por monarcas invariavelmente serviam à defesa de apadrinhados da nobreza. Cidadãos comuns começaram então a defender a liberdade para negociarem e obterem consequências advindas dessas negociações sem que regras impostas pela classe monárquica engessassem suas negociações.
Não creio que haja incompatibilidade entre o liberalismo econômico e as propostas skinnerianas de planejamento cultural e "diversificação planejada", sobretudo aquelas apresentadas em Beyond Freedom and Dignity. Teríamos talvez que aparar alguns excessos ideológicos, tanto de Friedman quanto de Skinner.
Considero que análises funcionais podem contribuir muito para o planejamento do que Friedman chamava de "um governo da lei ao invés de um governo de homens" e das "normas ao invés de autoridades". Fazer boas leis e normas exige, sobretudo, descrição de contingências e modificação de novas contingências.
O conceito de liberalismo se tornou um espantalho em debates, os quais são levados a cabo muitas vezes por pessoas que não leram uma linha sequer sobre registros históricos da gênese da ideologia liberal. Cria-se um liberalismo espantalho, que nunca existiu, dá-se a ele o nome de "neo-liberalismo" e começa-se a atacá-lo.
A ideologia que se tornou historicamente conhecida como liberalismo econômico não surgiu em contextos em que pessoas defendiam a ausência de normas ou de qualquer tipo de regulação da economia, como muito se tem dito. Na verdade, defendiam normas coletivamente negociadas entre cidadãos diversos que produziam riqueza, praticavam comércio, vendiam sua força de trabalho, em suma, que negociavam entre si das mais diversas formas.
O liberalismo econômico surgiu ainda antes de Adam Smith, em contextos de descentralização de poder em culturas sob regimes monárquicos, nas quais pequenas classes dirigentes ditavam normas a serem seguidas por muitos na prática da negociação e do comércio. Normas ditadas por monarcas invariavelmente serviam à defesa de apadrinhados da nobreza. Cidadãos comuns começaram então a defender a liberdade para negociarem e obterem consequências advindas dessas negociações sem que regras impostas pela classe monárquica engessassem suas negociações.
Nenhuma norma é instituída sem que uma pessoa ou um grupo de pessoas a tenha antes planejado e concebido. O problema é que muitas normas que regulam relações entre partes que negociam são ruins para todos no longo prazo, ou por não se ter tido o devido cuidado ao prever suas consequências, ou por atenderem a interesses imediatistas de legisladores - populismo, demagogia, legislação eleitoreira etc.
Relações de negociação entre indivíduos ocorrem de modos não planejados o tempo todo. É possível descrever essas relações, e, com base nessas descrições, formular normatizações pontuais que se mostrem necessárias, porém sem a institucionalização do engessamento em negociações. Estas podem ocorrer de modo difuso entre indivíduos na sociedade.
Planejadores e legisladores existem e sempre existiram em culturas organizadas por normas, e, no caso do Brasil, podemos dizer que temos tido péssimos planejadores já há bastante tempo, com raríssimas excessões.
Planejadores não têm conseguido prever satisfatoriamente as consequências das normas que instituem. Estas costumam ser mantidas por décadas, e, ao mesmo tempo em que oneram cidadãos, tanto pobres como ricos, perpetuam de modo institucionalizado a má qualidade na gestão de gastos públicos e burocracias desnecessárias.
Um exemplo disso é a seguridade social compulsória, ou previdência. Há uma norma que nos obriga a poupar e há outra norma que determina que essa nossa poupança deve obrigatoriamente ser gerida pelo governo. Os mesmos governos que, por meio de normas falhas, desperdiçam os recursos de nossa poupança compulsória, o fazem com a justificativa de que estão nos garantindo melhores condições futuras, o que é demonstravelmente uma inverdade.
Relações de negociação entre indivíduos ocorrem de modos não planejados o tempo todo. É possível descrever essas relações, e, com base nessas descrições, formular normatizações pontuais que se mostrem necessárias, porém sem a institucionalização do engessamento em negociações. Estas podem ocorrer de modo difuso entre indivíduos na sociedade.
Planejadores e legisladores existem e sempre existiram em culturas organizadas por normas, e, no caso do Brasil, podemos dizer que temos tido péssimos planejadores já há bastante tempo, com raríssimas excessões.
Planejadores não têm conseguido prever satisfatoriamente as consequências das normas que instituem. Estas costumam ser mantidas por décadas, e, ao mesmo tempo em que oneram cidadãos, tanto pobres como ricos, perpetuam de modo institucionalizado a má qualidade na gestão de gastos públicos e burocracias desnecessárias.
Um exemplo disso é a seguridade social compulsória, ou previdência. Há uma norma que nos obriga a poupar e há outra norma que determina que essa nossa poupança deve obrigatoriamente ser gerida pelo governo. Os mesmos governos que, por meio de normas falhas, desperdiçam os recursos de nossa poupança compulsória, o fazem com a justificativa de que estão nos garantindo melhores condições futuras, o que é demonstravelmente uma inverdade.
Um trecho de Friedman, em seu livro Capitalismo e Liberdade, deixa claro que não há em suas propostas, como alguns analistas do comportamento teimam em sugerir (ao que parece,sem terem lido o autor) a postura ingênua de se conceber liberdade como ausência absoluta de controle:
“Liberdade política significa ausência de coerção sobre um homem por parte de seus semelhantes. A ameaça fundamental à liberdade consiste no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado – um sistema de controle e equilíbrio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite, assim, que a força econômica fiscalize o poder político, ao invés de fortalecê-lo.”
Em outros trechos, Friedman deixa claro que liberalismo econômico não significa a defesa da ausência de regras, mas sim a defesa de que as regras sejam claras e válidas para todos, tanto para cidadãos comuns como para governantes. No mesmo livro aqui citado, há um subtítulo que é, por si mesmo, esclarecedor a esse respeito: “Normas ao Invés de Autoridades”.
Outros trechos do livro de Friedman que me parecem também esclarecedores:
“Vista como um meio para a obtenção da liberdade política, a organização econômica é importante devido ao seu efeito na concentração ou dispersão do poder. O tipo de organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a liberdade política, porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite que um controle o outro.”
“Fundamentalmente, só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões. Um é a direção central, utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro, a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado.”
“A possibilidade da coordenação por meio de ação voluntária está baseada na proposição elementar de que ambas as partes de uma transação econômica se beneficiam dela, desde que a transação seja bilateralmente organizada e voluntária. A troca pode, portanto, tornar possível a coordenação sem a coerção.”
“Enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que diz respeito à maior parte de suas atividades. O consumidor é protegido da coerção do vendedor devido à presença de outros vendedores com quem pode negociar. O vendedor é protegido da coerção do consumidor devido à existência de outros consumidores a quem pode vender. O empregado é protegido da coerção do empregador devido aos outros empregadores para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isso, impessoalmente, e sem nenhuma autoridade centralizada.”
“A economia livre dá às pessoas o que elas querem e não o que um grupo particular acha que devem querer.”
“A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das "regras do jogo" e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos - e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo.”
“Uma das características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos indivíduos de desejar e propor abertamente uma mudança radical na estrutura da sociedade - desde que tal empresa se adstrinja à persuasão e não inclua a força ou outra forma de coerção.”
“Numa sociedade de mercado livre, é suficiente ter fundos. Os fornecedores de papel estão dispostos a fornecer material tanto ao Daily Worker quanto ao Wall Street Journal. Numa sociedade socialista, não seria suficiente ter os fundos. O hipotético partidário do capitalismo [em uma sociedade socialista] teria que persuadir uma fábrica de papel do governo a vender-lhe o material; uma editora do governo a imprimir para ele; o serviço de correios do governo a distribuir seus panfletos; uma agência do governo a lhe alugar uma sala para reuniões e conferências.”
“Uma pessoa pode acreditar, como eu acredito, que o comunismo destruirá todas as nossas liberdades; uma pessoa pode opor-se a ele tão firmemente quanto possível e, no entanto, ao mesmo tempo, também acreditar que numa sociedade livre é intolerável que um homem seja impedido de dizer e fazer acordos voluntários com outros, acordos esses mutuamente atraentes, porque acredita no comunismo, ou está tratando de promovê-lo. Sua liberdade inclui sua liberdade de tentar promover o comunismo. E a liberdade também inclui, é claro, a liberdade de outros de não negociarem tais circunstâncias.”
“Para o liberal, os meios apropriados são a discussão livre e a cooperação voluntária.”
“Do mesmo modo que um bom jogo exige que os jogadores aceitem tanto as regras quanto o árbitro encarregado de interpretá-las e de aplicá-las, uma boa sociedade exige que seus membros concordem com as condições gerais que presidirão as relações entre eles, com o modo de arbitrar interpretações diferentes dessas condições e com algum dispositivo para garantir o cumprimento das regras comumente aceitas. Como nos jogos, também nas sociedades, a maior parte das condições gerais constitui o conjunto de costumes, aceitos automaticamente. Quando muito, só consideramos explicitamente pequenas modificações nele introduzidas, embora o efeito cumulativo de uma série de pequenas modificações possa vir a constituir uma alteração drástica nas características do jogo ou da sociedade. Tanto nos jogos quanto na sociedade, nenhum conjunto de regras pode prevalecer, a não ser que a maioria dos participantes as obedeça durante a maior parte do tempo, sem a necessidade de sanções externas, a não ser, portanto, que exista um consenso social subjacente. Mas, não podemos contar somente com o costume ou com esse consenso para interpretar e pôr as regras em vigor; é necessário um árbitro. Esses são, pois, os papéis básicos do governo numa sociedade livre - prover os meios para modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A necessidade do governo nesta área surge porque a liberdade absoluta é impossível.”
“Que significado se deve dar à palavra ‘livre’ quando qualifica ‘iniciativa’? Nos Estados Unidos, "livre" tem sido entendido como significando que todos têm a liberdade de fundar uma empresa - o que significa que as empresas existentes não têm a liberdade de manter os competidores fora do campo, a não ser com a venda de produtos melhores ao mesmo preço ou dos mesmos a preço mais baixo. Na tradição continental, por outro lado, significa em geral que as empresas têm a liberdade de fazer o que quiserem, incluindo a fixação de preços, a divisão do mercado e a adoção de outras técnicas para manter afastados os competidores em potencial.”
“Em suma, a organização da atividade econômica através da troca voluntária presume que se tenha providenciado, por meio do governo, a manutenção de leis e normas que previnam a coerção de um indivíduo por outro, garantindo a execução de contratos voluntariamente estabelecidos, a definição do significado de direitos de propriedade, a sua interpretação e execução e o fornecimento de uma estrutura monetária.”
“Acreditamos que os pais são geralmente os mais habilitados para proteger seus filhos e proporcionar que se desenvolvam como indivíduos responsáveis, para os quais a liberdade é apropriada. Mas não acreditamos na liberdade dos pais para fazer o que quiserem com outras pessoas. Crianças são indivíduos responsáveis em potencial, e quem acredita em liberdade acredita em proteger seus direitos últimos.”
“Devemos confiar em nosso julgamento falível e, tendo chegado a um julgamento, na nossa capacidade de convencer nossos semelhantes de que é um julgamento correto, ou na sua capacidade de nos persuadir a modificar nossos pontos de vista. Devemos depositar nossa convicção, aqui como alhures, em um consenso alcançado por homens imperfeitos e tendenciosos através do debate livre e da tentativa e erro.”
“O liberal teme fundamentalmente a concentração de poder. Seu objetivo é o de preservar o grau máximo de liberdade para cada indivíduo em separado - compatível com a não-interferência na liberdade de outro indivíduo. O liberal acredita que este objetivo exige que o poder seja disperso. Não vê com bons olhos entregar ao governo qualquer operação que possa ser executada por meio do mercado – primeiro, porque tal fato substituiria a cooperação voluntária pela coerção na área em questão, e, segundo, porque dar ao governo um poder maior é ameaçar a liberdade em outras áreas.”
“A necessidade de dispersão do poder coloca um problema especialmente difícil no campo do dinheiro. Existe uma concordância bastante ampla de que o governo deve ter alguma responsabilidade em termos de assuntos monetários. Há também amplo reconhecimento de que o controle sobre o dinheiro pode constituir instrumento importante para controlar e modelar a economia. O problema consiste em estabelecer arranjos institucionais que irão permitir ao governo exercer responsabilidade pelo dinheiro, e, ao mesmo tempo, limitar o poder que lhe é dado e prevenir que esse poder seja usado de modos que tendam a enfraquecer, mais do que fortalecer uma sociedade livre.”
“O único meio já sugerido e que parece promissor é tentar estabelecer um governo da lei em vez de um governo de homens, por meio do processo legislativo de normas para a direção da política monetária, processo este que terá o efeito de permitir ao público exercer controle sobre a política monetária por meio de autoridades políticas e, ao mesmo tempo, evitar que a política monetária seja vítima dos caprichos do dia a dia das autoridades políticas.”
“A liberdade individual para escolher e a competição das empresas privadas por clientes [dão] lugar ao aprimoramento dos tipos de contrato disponíveis e promovem variedade e diversidade, que vão ao encontro das necessidades individuais.”
“O liberal acolherá, de bom grado, medidas que promovam tanto a liberdade quanto a igualdade como, por exemplo, os meios para eliminar o poder monopolista e desenvolver as operações do mercado.”
“O erro central dessas medidas [de planejamento estatal da economia] reside no fato de tentarem, por meio do governo, obrigar as pessoas a agir contra seus interesses imediatos a fim de promoverem um suposto interesse geral. Tentam resolver o que se supõe um conflito de interesses, ou uma diferença de pontos de vista com relação a interesses, não por meio de uma estrutura que elimine o conflito ou tentando persuadir as pessoas a ter interesses diferentes, mas forçando as pessoas a agir contra seu próprio interesse. Substituem os valores dos participantes pelos que estão de fora; alguns dizendo a outros o que é bom para eles ou o governo tirando de alguns para beneficiar outros. Estas medidas enfrentam, portanto, uma das mais poderosas e mais criativas forças conhecidas pelo homem - a tentativa de milhões de indivíduos de defender seus interesses, de viver suas vidas de acordo com seus próprios valores. É esta a razão principal de as medidas haverem tido, tão frequentemente, efeito contrário ao pretendido. É também uma das maiores forças da sociedade livre e explica por que os regulamentos governamentais não conseguem dominá-la.”
“A concentração do poder não é tornada inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.”
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Contiguidade e Crença
Para abordar como relações de contigüidade podem influenciar tanto a gênese como modificações socialmente relevantes de comportamentos caracterizados como religiosos, podemos especular livremente sobre algumas possibilidades e também analisar registros históricos.
Um vulcão, num período temporalmente muito remoto, entra em erupção no território onde se situa a atual Indonésia. Uma cultura isolada de indivíduos humanos que vivem no território atualmente chamado México (imaginemos os astecas) sofre as consequências da erupção do outro lado do planeta: três anos consecutivos de invernos rigorosos devido à suspensão de partículas vulcânicas na atmosfera terrestre. Alterações no clima afetam globalmente o planeta, e a agricultura da cultura asteca é também afetada. A pouca disponibilidade de alimentos gera fome e, consequentemente, doenças. Muitas crianças morrem devido à desnutrição e doenças. Alguns cidadãos astecas com poder de decisão efetivo sobre comportamentos dos demais indivíduos (classe sacerdotal governante) observam uma proximidade temporal entre a alta taxa de mortalidade infantil e a gradual atenuação do clima, a qual é seguida pela retomada gradual da produção agrícola. Uma vez que a produção agrícola, após três rigorosos invernos, não é suficiente para alimentar a todos os cidadãos da cultura asteca, torna-se plausível para governantes com suficiente poder discricionário que o sacrifício de crianças é uma opção: acredita-se que trará atenuação do clima e melhora da produção agrícola, relação anteriormente observada, quando a morte crescente de crianças foi sucedida pela amenização gradual das intempéries climáticas.
Crianças são sacrificadas em rituais religiosamente caracterizados. O clima no território asteca melhora naturalmente após a atenuação dos efeitos globais da erupção vulcânica. O ritual de sacrifício infantil é mantido por gerações de indivíduos da cultura asteca após diminuições e aumentos intermitentes da produção agrícola, os quais necessariamente viriam a ocorrer, sendo ou não feitos sacrifícios. A possibilidade de controle da taxa de natalidade e de seus efeitos por meio de sacrifícios ritualísticos contribui para manter a prática cultural de sacrifício de crianças ao longo de gerações de indivíduos. Alguns questionam a validade efetiva do sacrifício ritualístico de seus filhos. São também mortos em rituais. Cidadãos que possuem mais recursos fazem doações substanciais aos sacerdotes e nem eles nem seus filhos são escolhidos para sacrifícios. A classe sacerdotal adquire mais e mais recursos e mantém uma lucrativa prática de extorsão. Indivíduos que afirmam que sacrifícios de crianças não mantêm relação alguma com a melhora do clima e das colheitas são condenados por heresia e também sacrificados.
É claro que tais especulações não devem ser levadas a sério. Afinal, são apenas especulações. No entanto, se tomamos registros históricos de períodos em que houve modificações sociais amplas e relevantes em comportamentos categorizados como religiosos, veremos que freqüentemente eventos ocorridos temporalmente próximos a essas modificações sociais influenciaram de modos decisivos sua ocorrência.
Segundo o historiador Eusebius de Cesaréia, o imperador romano Constantino I relata ter tido, em 312 D.C., uma visão no campo de batalha, justamente na tarde anterior a uma das batalhas decisivas que decidiriam sua ascensão rumo ao título de único imperador romano. Relata ter lido no céu a frase grega ἐν τούτῳ νίκα [Sob este sinal vencerás] e ter visto também, como a enfeitar o sol, uma cruz de fogo. Relata ter sonhado, na manhã seguinte a essa visão, com uma voz que lhe ordenava que um símbolo cristão bastante conhecido à época fosse pintado nos escudos dos soldados: a sobreposição das duas iniciais gregas da palavra Cristo – Χριστός – um X e um P sobrepostos. Ao se levantar, Constantino prontamente fez o que a voz lhe ordenara. Os soldados, que professavam o mitraísmo, religião então hegemônica, não protestaram, uma vez que também no mitraísmo era comum o uso da cruz como símbolo religioso. No evento que se tornou conhecido como a Batalha da Ponte Mílvia, Constantino e seus soldados saíram vitoriosos, massacrando os adversários. Após essa vitória, várias outras ocorreram com soldados empunhando escudos com o símbolo cristão. Os relatos sugerem que o evento ocorrido na Ponte Mílvia foi determinante para a conversão definitiva de Constantino à fé cristã, o que veio a ter desdobramentos também decisivos quanto à disseminação exponencial dessa fé, e quanto ao banimento, muitos anos mais tarde, das crenças pagãs sob o Império Romano.
Deve-se levar em conta também o fato de que Helena, mãe de Constantino, convertera-se à fé cristã ao ser abandonada por Constâncio, pai de Constantino, o que presumivelmente teve influência sobre a educação deste ainda na infância, contribuindo para sua predisposição à aceitação do cristianismo. Não se pretende aqui excluir a possibilidade de que contingências eminentemente políticas tenham levado Constantino a inventar todo o relato sobre a visão e o sonho ao historiador cristão Eusebius de Cesaréia, autor conhecido por seu propagandismo da fé cristã, ou mesmo que este último o tenha completamente inventado. No entanto, o fato de que isso possa realmente ter ocorrido parece apenas fortalecer a hipótese de que a suscetibilidade humana às contigüidades tem servido, ao longo da história, a interesses políticos, como ocorre ainda hoje. Seria digno de nota se soubéssemos que Constantino planejara cuidadosamente tornar público que seus sucessos em batalhas deveriam ser atribuídos à vontade divina e aos sinais pintados nos escudos após uma misteriosa revelação. Seria igualmente digno de nota se Eusebius de Cesaréia tivesse pretendido deliberadamente deixar tal registro, ainda que fictício, para a posteridade. Apontar relações de contigüidade e utilizá-las como táticas de amedrontamento e convencimento é algo que o animal humano possivelmente faz desde os primórdios da era em que adquiriu controle efetivo sobre os órgãos fonoarticulatórios. Esse uso deliberado de contiguidades, no entanto, só se tornaria possível caso os indivíduos que nele se engajassem já tivessem, eles próprios, sido amedrontados em relações anteriores de contigüidade.
Uma análise cuidadosa dos eventos – contingências e contigüidades – que levaram à adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano renderia muitas e muitas páginas. Situar os eventos que antecederam e sucederam mais imediatamente a Batalha da Ponte Mílvia pode nos fornecer apenas uma breve sugestão de como eventos históricos específicos e bem localizados, sob a forte influência de contigüidades, podem ser determinantes com relação a modificações amplas nos ambientes culturais humanos. É possível que o comportamento de Constantino I na tarde de 28 de outubro de 312 D.C., quando mandou que fossem pintados símbolos cristãos nos escudos de seus soldados, tenha modificado um longo encadeamento contingencial que perpassa agora meu comportamento de escrever este texto, e, logicamente, também o de quem o lê.
Resposta a um Jovem Discípulo de Lacan
Em uma discussão, um jovem lacaniano afirmava que procedimentos analítico-comportamentais de tratamento não levariam em conta a subjetividade de pessoas com desenvolvimento atípico. Espero que a resposta abaixo ajude a esclarecer esse equívoco, que costuma ser alardeado por aqueles que ignoram o que é a análise do comportamento.
Há pessoas com deficiências muito severas cujas relações com as pessoas com as quais conviveram e convivem podem contribuir de modo decisivo para que repertórios muito problemáticos sejam selecionados justamente em contextos ocorridos nessas relações.
Uma criança com uma deficiência severa que tenha tido problemas significativos ao adquirir repertório comunicativo, por exemplo, pode receber atenções imediatas ou alguma conseqüência que lhe seja agradável logo após agir de modos bastante extremos, como se agredir, gritar, jogar-se no chão etc.
Tais comportamentos extremos podem também ser consequenciados imediatamente com amenizações ou cessações de incômodos. Se a criança estiver sendo incomodada de alguma forma, pode se comportar de modos extremos, e, imediatamente, obter redução ou cessação do incômodo que esteja sendo produzido por outra pessoa.
O que nos acontece nos modifica em termos de sinapses nervosas, respostas imunológicas etc., sendo modificados, assim, também os modos como reagimos em contextos semelhantes que venham a nos ocorrer em nossa história.
Se tomamos uma vacina ou respiramos um vírus, nosso organismo passa a responder de modo diferente daquele como respondia anteriormente, mesmo que sequer cheguemos a descrever como ou quando tal modificação ocorreu.
De modo análogo ao exemplo de modificações pontuais ocorridas no chamado sistema imunológico, o que nos acontece está sempre modificando sinapses em nosso sistema nervoso, sendo modificados, assim, também os modos como respondemos aos contextos diversos de nossa história.
Não descrevemos tudo o que nos acontece e nos modifica. Não descrevemos como foram modificados os modos como respondemos ao mundo. No entanto, ainda que não sejamos capazes de descrever o que nos aconteceu e nos modificou, nosso responder é modificado. Se eu passar por você na rua amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará minha resposta de um modo diferente de como controlava antes.
Quem possui repertório descritivo pode descrever como se deram algumas dessas modificações. É muito comum que isso ocorra em terapia ou em sessões de psicanálise. Na medida em que narramos o que nos aconteceu, vamos tomando “consciência” de como viemos a nos tornar quem somos, como chegamos a pensar como pensamos, sentir como sentimos e agir como agimos.
Desse modo, podemos nos tornar capazes de fazer escolhas fundamentadas no histórico de modificações que nos ocorreram. Podemos nos tornar capazes de agir de modos muito diferentes de como vínhamos agindo, sem repetir escolhas que vinham nos trazendo sofrimento, escolhas estas cuja determinação, até então, era-nos muitas vezes totalmente inconsciente.
No caso de pessoas com deficiências severas que não adquiriram qualquer repertório descritivo, não podemos contar com descrições fornecidas pela própria pessoa. Devemos, então, basear o trabalho terapêutico em descrições fornecidas por terceiros e em observações diretas dos modos como ela age em contextos diversos de sua história. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao que chamaríamos de sua subjetividade.
A criança com um repertório de comportamentos extremos muitas vezes perde diversas oportunidades de aproveitar contextos de diversão, passeios, festas etc., pois pais e cuidadores geralmente evitam levá-la nessas ocasiões, por terem passado por dificuldades em contextos anteriores. A criança se comporta de modos extremos sob controle de conseqüências imediatas ocorridas em sua história. Ela não é capaz de descrever conseqüências que demoram a ocorrer, as quais muitas vezes lhe são muito desfavoráveis.
Compete a nós, nesses casos, descrevermos o que lhe aconteceu, o que lhe acontece e como os contextos atuais relacionam-se com seu responder atual. Essas descrições fornecerão bases para planejarmos o que lhe acontecerá para que sejam selecionados comportamentos que lhe propiciem maiores realizações e qualidade de vida.
Há pessoas com deficiências muito severas cujas relações com as pessoas com as quais conviveram e convivem podem contribuir de modo decisivo para que repertórios muito problemáticos sejam selecionados justamente em contextos ocorridos nessas relações.
Uma criança com uma deficiência severa que tenha tido problemas significativos ao adquirir repertório comunicativo, por exemplo, pode receber atenções imediatas ou alguma conseqüência que lhe seja agradável logo após agir de modos bastante extremos, como se agredir, gritar, jogar-se no chão etc.
Tais comportamentos extremos podem também ser consequenciados imediatamente com amenizações ou cessações de incômodos. Se a criança estiver sendo incomodada de alguma forma, pode se comportar de modos extremos, e, imediatamente, obter redução ou cessação do incômodo que esteja sendo produzido por outra pessoa.
O que nos acontece nos modifica em termos de sinapses nervosas, respostas imunológicas etc., sendo modificados, assim, também os modos como reagimos em contextos semelhantes que venham a nos ocorrer em nossa história.
Se tomamos uma vacina ou respiramos um vírus, nosso organismo passa a responder de modo diferente daquele como respondia anteriormente, mesmo que sequer cheguemos a descrever como ou quando tal modificação ocorreu.
De modo análogo ao exemplo de modificações pontuais ocorridas no chamado sistema imunológico, o que nos acontece está sempre modificando sinapses em nosso sistema nervoso, sendo modificados, assim, também os modos como respondemos aos contextos diversos de nossa história.
Não descrevemos tudo o que nos acontece e nos modifica. Não descrevemos como foram modificados os modos como respondemos ao mundo. No entanto, ainda que não sejamos capazes de descrever o que nos aconteceu e nos modificou, nosso responder é modificado. Se eu passar por você na rua amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará minha resposta de um modo diferente de como controlava antes.
Quem possui repertório descritivo pode descrever como se deram algumas dessas modificações. É muito comum que isso ocorra em terapia ou em sessões de psicanálise. Na medida em que narramos o que nos aconteceu, vamos tomando “consciência” de como viemos a nos tornar quem somos, como chegamos a pensar como pensamos, sentir como sentimos e agir como agimos.
Desse modo, podemos nos tornar capazes de fazer escolhas fundamentadas no histórico de modificações que nos ocorreram. Podemos nos tornar capazes de agir de modos muito diferentes de como vínhamos agindo, sem repetir escolhas que vinham nos trazendo sofrimento, escolhas estas cuja determinação, até então, era-nos muitas vezes totalmente inconsciente.
No caso de pessoas com deficiências severas que não adquiriram qualquer repertório descritivo, não podemos contar com descrições fornecidas pela própria pessoa. Devemos, então, basear o trabalho terapêutico em descrições fornecidas por terceiros e em observações diretas dos modos como ela age em contextos diversos de sua história. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao que chamaríamos de sua subjetividade.
A criança com um repertório de comportamentos extremos muitas vezes perde diversas oportunidades de aproveitar contextos de diversão, passeios, festas etc., pois pais e cuidadores geralmente evitam levá-la nessas ocasiões, por terem passado por dificuldades em contextos anteriores. A criança se comporta de modos extremos sob controle de conseqüências imediatas ocorridas em sua história. Ela não é capaz de descrever conseqüências que demoram a ocorrer, as quais muitas vezes lhe são muito desfavoráveis.
Compete a nós, nesses casos, descrevermos o que lhe aconteceu, o que lhe acontece e como os contextos atuais relacionam-se com seu responder atual. Essas descrições fornecerão bases para planejarmos o que lhe acontecerá para que sejam selecionados comportamentos que lhe propiciem maiores realizações e qualidade de vida.
sexta-feira, 8 de julho de 2011
A Ilusão do Livre-Arbítrio: Suas Causas e Suas Consequências (1885)
* Postagem editada após nova tradução, conferida com o original em alemão.
A tradução anterior havia sido traduzida a partir de uma tradução do inglês. O tradutor para o inglês havia alterado o título da obra (coisa que alguns tradutores brasileiros também adoram fazer, mas que não aprecio nem um pouco). O título em inglês era "Determinismo e a Ilusão da Responsabilidade Moral". Não houve grandes alterações no corpo do texto.
Em contraste com o nome do blog, que anuncia Novas Contingências, trago aqui uma tradução recente que fiz de uma "velha contingência", a qual, a meu ver, é um registro histórico importante.
A tradução anterior havia sido traduzida a partir de uma tradução do inglês. O tradutor para o inglês havia alterado o título da obra (coisa que alguns tradutores brasileiros também adoram fazer, mas que não aprecio nem um pouco). O título em inglês era "Determinismo e a Ilusão da Responsabilidade Moral". Não houve grandes alterações no corpo do texto.
Em contraste com o nome do blog, que anuncia Novas Contingências, trago aqui uma tradução recente que fiz de uma "velha contingência", a qual, a meu ver, é um registro histórico importante.
O texto abaixo é parte do primeiro capítulo de um livro publicado pelo filósofo Paul Rée em 1885. Quando comecei a lê-lo, imediatamente pensei: preciso traduzir isso! Esse cara merece muito ser lido!
Analistas do comportamento provavelmente ficarão bastante surpresos com os modos como o filósofo, em 1885, já abordava aquilo que hoje conhecemos como controle de estímulos, filogênese e ontogênese.
Espero que apreciem a leitura!
A Ilusão do Livre-Arbítrio: Suas Causas e Suas Consequências (1885)
Paul Rée
1. As Causas da Ilusão
Dizer que a vontade não é livre significa dizer que ela está sujeita à lei da causalidade. Cada ato de vontade é, de fato, precedido por uma causa suficiente. Sem tal causa, o ato de vontade não pode ocorrer, e, se a causa suficiente estiver presente, o ato de vontade deve ocorrer.
Dizer que a vontade é livre significa que ela não está sujeita à lei da causalidade. Nesse caso, todo ato de vontade seria um começo absoluto [a primeira causa] e não um elo [em uma cadeia de eventos]: não seria o efeito de causas anteriores.
As reflexões que se seguem podem servir para esclarecer o que significa dizer que a vontade não é livre... Cada objeto, uma pedra, um animal, um ser humano, pode passar de seu estado atual para outro. A pedra que agora está na minha frente pode, no momento seguinte, voar pelo ar, ou pode desintegrar-se em pó ou rolar pelo chão. Se, no entanto, um desses possíveis estados está para ser realizado, sua causa suficiente deve primeiro estar presente. A pedra irá voar pelo ar se for jogada. Vai rolar se uma força atuar sobre ela. Ela irá se desintegrar em pó caso algum objeto a atinja e esmague. É útil usar os termos "potencial" e "atual" nesse contexto. A qualquer momento, existem inumeravelmente muitos estados em potencial. Em um determinado momento, no entanto, apenas um pode se tornar real, ou seja, aquele que é desencadeado por sua causa suficiente.
A situação não é diferente no caso de um animal. O jumento que agora está parado entre dois montes de feno pode, no momento seguinte, virar para a esquerda ou para a direita, ou pode saltar para o ar ou colocar a cabeça entre as pernas. Mas, também aqui, a causa suficiente deve primeiro estar presente se, dos possíveis modos de comportamento, um será realizado.
Analisemos um desses modos de comportamento. Vamos supor que o jumento virou-se para o monte à sua direita. Este virar-se pressupõe que certos músculos foram contraídos. A causa dessa contração muscular é a excitação dos nervos que levam a eles. A causa dessa excitação dos nervos é um estado do cérebro. Este estava em um estado de decisão. Mas como o cérebro veio a estar nessa condição? Vamos traçar um pouco mais anteriormente os estados do jumento.
Alguns momentos antes de ele se virar, seu cérebro ainda não estava constituído de modo a produzir a causa suficiente para a excitação dos nervos em questão e para a contração dos músculos; pois, caso contrário, o movimento teria ocorrido. O jumento ainda não tinha "decidido" se virar. Se ele então moveu-se em algum momento subsequente, seu cérebro deve ter se tornado, nesse meio tempo, constituído de modo a provocar a excitação dos nervos e o movimento dos músculos. A partir disso, o cérebro sofreu alguma mudança. A que causas deve essa mudança ser atribuída? À efetividade de uma impressão que, a partir do exterior, provocou uma sensação que surgiu internamente (por exemplo, a sensação da fome e a idéia do monte de feno à direita), por conjuntamente afetarem o cérebro, modificando o modo como ele é constituído, de modo tal que agora ele produz a causa suficiente para a excitação dos nervos e a contração dos músculos. O jumento agora "quer" virar para a direita; ele agora vira para a direita.
Portanto, assim como a posição e a constituição da pedra, por um lado, e a intensidade e a direção da força que atua sobre ela, por outro, necessariamente determinam o tipo e a duração do seu vôo, também o movimento do jumento – o voltar-se para o monte de feno à direita – é não menos necessariamente o resultado do modo como o cérebro do jumento e o estímulo estão constituídos em um determinado momento. Que o jumento tenha se virado para este monte específico foi determinado por algo trivial. Se o monte que o jumento não escolheu estivesse posicionado apenas um pouco diferente, ou se ele tivesse um cheiro diferente, ou se o fator subjetivo – o sentido do olfato do jumento ou seus órgãos visuais – tivesse se desenvolvido de algum modo diferente, então, assim se pode supor, o jumento teria se virado para a esquerda. Mas a causa não estava aí completa, e é por isso que o efeito não poderia ocorrer, enquanto em relação ao outro caso, onde a causa estava completa, o efeito não poderia deixar de aparecer.
Para o jumento, conseqüentemente, assim como para a pedra, há inumeravelmente muitos estados potenciais a qualquer momento: ele pode caminhar, correr, saltar, mover-se para a esquerda, para a direita ou para a frente. Mas somente aquele estado cuja causa suficiente esteja presente pode se tornar atual.
Ao mesmo tempo, há uma diferença entre o jumento e a pedra, e reside no fato de que o jumento se move porque quer se mover, enquanto a pedra se move porque é movida. Não negamos essa diferença. Há, afinal, um bom número de outras diferenças entre o jumento e a pedra. Não pretendemos, por qualquer meio, provar que essa dissimilaridade não exista. Não afirmamos que o jumento é uma pedra, mas apenas que cada movimento e cada ato de vontade do jumento têm causas, assim como o movimento da pedra. O jumento se move porque quer se mover. Mas que ele queira se mover em um determinado momento e numa direção específica é causalmente determinado.
Poderia ser que não houvesse causa suficiente para o querer se virar do jumento – que ele simplesmente quisesse se virar? Seu ato de vontade seria, então, um início absoluto. Uma suposição dessa natureza é contrariada pela experiência e pela validade universal da lei da causalidade. Pela experiência, uma vez que a observação nos ensina que, para todo ato de vontade, algumas causas foram os fatores determinantes. Pela validade universal da lei da causalidade, uma vez que, afinal, nada acontece em qualquer lugar do mundo sem uma causa suficiente. Por que, então, de todas as coisas, um ato de vontade de um jumento deveria vir a existir sem uma causa? Além disso, o estado do querer, o qual imediatamente precede a excitação dos nervos motores, não é diferente, em princípio, de outros estados – como a indiferença, a fadiga ou o cansaço. Alguém acreditaria que todos estes estados existem sem uma causa? E se não se acredita nisso, por que se consideraria que apenas o estado do querer deveria ocorrer sem uma causa suficiente?
É fácil explicar por que nos parece que o movimento da pedra é necessário, enquanto o ato de vontade do jumento não é. As causas que movem a pedra são, afinal de contas, externas e visíveis. Mas as causas do ato de vontade do jumento são internas e invisíveis; entre nós e o locus de sua eficácia encontra-se o crânio do jumento. Consideremos essa diferença um pouco mais de perto. A pedra repousa diante de nós como é constituída. Nós também podemos ver a força que atua sobre ela, e, a partir destes dois fatores, a constituição da pedra e a força, resulta igualmente visível o rolar da pedra. O caso do jumento é diferente. O estado de seu cérebro está escondido de nossa vista. E, embora o monte de feno seja visível, sua eficácia não é. É um processo interno. O monte de feno não entra em contato visível com o cérebro, mas age à distância. Assim, os fatores subjetivo e objetivo – o cérebro e o impacto que o monte de feno tem sobre ele – são invisíveis.
Suponhamos que pudéssemos descrever a alma do jumento em alto relevo, tendo em conta e tornando visíveis todos aqueles estados, atitudes e sentimentos que o caracterizam antes de ele se virar.
Suponhamos, ainda, que pudéssemos ver como uma imagem se destaca do monte de feno e, percorrendo um trajeto visível através do ar, invade o cérebro do jumento, e como ela produz nele uma mudança em consequência da qual certos nervos e músculos se movem. Suponhamos, finalmente, que pudéssemos repetir esse experimento muitas vezes de forma arbitrária, que, se voltássemos a alma do jumento para o estado precedente ao seu virar-se e deixássemos exatamente a mesma impressão agir sobre ele, devêssemos observar sempre o mesmo resultado. Então consideraríamos o virar à direita do jumento como necessário. Viríamos a perceber que o cérebro, constituído como estava naquele momento, tinha que reagir a tal impressão precisamente dessa maneira.
Na ausência deste experimento, tem-se a impressão de que o ato de vontade do jumento não foi causalmente determinado. Nós apenas não o vemos sendo causalmente determinado, e, conseqüentemente, acreditamos que tal determinação não tem lugar. O ato de vontade, diz-se, é a causa do virar-se, mas não é, ele mesmo, determinado; diz-se que é um início absoluto.
A opinião de que o ato de vontade do jumento não é causalmente determinado é sustentada não só por quem está de fora; o próprio jumento, tivesse ele o dom do raciocínio, a compartilharia. As causas de seu ato de vontade o iludiriam também, uma vez que no todo elas não se tornam conscientes de qualquer modo, e em parte passam através da consciência fugazmente, com a velocidade de um relâmpago. Se, por exemplo, o que fez pender a balança foi que ele estava mais próximo por um triz do monte de feno à direita, ou que este tinha um cheiro um pouquinho melhor, como deveria o jumento notar algo tão trivial, algo que tão totalmente falha em se impor sobre sua consciência?
Em certo sentido, é claro, o jumento está certo em pensar: "eu poderia ter me virado para a esquerda." Seu estado no momento, sua posição relativa ao monte de feno ou sua constituição precisavam meramente ter sido um pouco diferentes, e ele realmente teria virado para a esquerda. A afirmação “eu poderia ter agido de outra forma " é, portanto, verdadeira neste sentido: virar para a esquerda é um dos movimentos possíveis para mim (em contraste, por exemplo, com o movimento de voar); ele se encontra dentro da esfera de minhas possibilidades.
Chegamos ao mesmo resultado se tomamos a lei da inércia como ponto de partida. Ela prevê: todo objeto tende a permanecer em seu estado atual. Expresso negativamente, isto torna-se: sem uma causa suficiente, nenhum objeto pode passar de seu estado atual para outro. A pedra vai permanecer para sempre como está agora, não vai sofrer a menor mudança se quaisquer causas – tais como o clima ou uma força – não agirem sobre ela para acarretar uma mudança. O cérebro do jumento permanecerá no mesmo estado inalterado se quaisquer causas – a sensação de fome ou fadiga, por exemplo, ou impressões externas – não acarretarem uma mudança.
Se refletimos sobre a vida inteira do jumento sub specie necessitatis [sob a luz da necessidade], chegamos ao seguinte resultado. O jumento veio ao mundo com determinadas propriedades da mente e do corpo, a herança de seus ancestrais. Desde o dia de seu nascimento, impressões – dos companheiros com quem se divertiu ou se esforçou, sua alimentação, o clima – agiram sobre essas propriedades. Esses dois fatores, sua constituição inata e o modo como esta foi formada através das impressões da vida posterior, são a causa de todas as suas sensações, idéias e humores, e de todos os seus movimentos, mesmo os mais triviais. Se, por exemplo, ele ergue sua orelha esquerda e não a direita, isso é determinado por causas cujo histórico de desenvolvimento poderia ser traçado ad infinitum, e do mesmo modo quando ele fica de pé, vacilante, entre os dois montes de feno. E quando a ação, o ato de alimentar, toma o lugar da vacilação, isso também é determinado: a idéia do monte de feno agora atua sobre a mente do jumento, quando ele se tornou receptivo à idéia daquele feixe de feno em particular, de tal forma a produzir ações.
Palavras-chave: Behaviorismo radical; Radical behaviorism; Determinismo; Determinism; B. F. Skinner; Free will; Eu iniciador; Initiating self
Tradução: Marcus Vinícius Fonseca de Garcia
Link para a tradução em inglês:
http://web.nmsu.edu/~jvessel/Ree-D&MR.pdf
Link para o original em alemão:
http://www.gleichsatz.de/b-u-t/trad/moralt/ree-will1.html
http://web.nmsu.edu/~jvessel/Ree-D&MR.pdf
Link para o original em alemão:
http://www.gleichsatz.de/b-u-t/trad/moralt/ree-will1.html
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Inicio aqui minha jornada de blogueiro. Mas, afinal de contas, o que vem a ser um blogueiro? Sei lá... Pretendo descobrir em breve.
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