* Postagem editada após nova tradução, conferida com o original em alemão.
A tradução anterior havia sido traduzida a partir de uma tradução do inglês. O tradutor para o inglês havia alterado o título da obra (coisa que alguns tradutores brasileiros também adoram fazer, mas que não aprecio nem um pouco). O título em inglês era "Determinismo e a Ilusão da Responsabilidade Moral". Não houve grandes alterações no corpo do texto.
Em contraste com o nome do blog, que anuncia Novas Contingências, trago aqui uma tradução recente que fiz de uma "velha contingência", a qual, a meu ver, é um registro histórico importante.
A tradução anterior havia sido traduzida a partir de uma tradução do inglês. O tradutor para o inglês havia alterado o título da obra (coisa que alguns tradutores brasileiros também adoram fazer, mas que não aprecio nem um pouco). O título em inglês era "Determinismo e a Ilusão da Responsabilidade Moral". Não houve grandes alterações no corpo do texto.
Em contraste com o nome do blog, que anuncia Novas Contingências, trago aqui uma tradução recente que fiz de uma "velha contingência", a qual, a meu ver, é um registro histórico importante.
O texto abaixo é parte do primeiro capítulo de um livro publicado pelo filósofo Paul Rée em 1885. Quando comecei a lê-lo, imediatamente pensei: preciso traduzir isso! Esse cara merece muito ser lido!
Analistas do comportamento provavelmente ficarão bastante surpresos com os modos como o filósofo, em 1885, já abordava aquilo que hoje conhecemos como controle de estímulos, filogênese e ontogênese.
Espero que apreciem a leitura!
A Ilusão do Livre-Arbítrio: Suas Causas e Suas Consequências (1885)
Paul Rée
1. As Causas da Ilusão
Dizer que a vontade não é livre significa dizer que ela está sujeita à lei da causalidade. Cada ato de vontade é, de fato, precedido por uma causa suficiente. Sem tal causa, o ato de vontade não pode ocorrer, e, se a causa suficiente estiver presente, o ato de vontade deve ocorrer.
Dizer que a vontade é livre significa que ela não está sujeita à lei da causalidade. Nesse caso, todo ato de vontade seria um começo absoluto [a primeira causa] e não um elo [em uma cadeia de eventos]: não seria o efeito de causas anteriores.
As reflexões que se seguem podem servir para esclarecer o que significa dizer que a vontade não é livre... Cada objeto, uma pedra, um animal, um ser humano, pode passar de seu estado atual para outro. A pedra que agora está na minha frente pode, no momento seguinte, voar pelo ar, ou pode desintegrar-se em pó ou rolar pelo chão. Se, no entanto, um desses possíveis estados está para ser realizado, sua causa suficiente deve primeiro estar presente. A pedra irá voar pelo ar se for jogada. Vai rolar se uma força atuar sobre ela. Ela irá se desintegrar em pó caso algum objeto a atinja e esmague. É útil usar os termos "potencial" e "atual" nesse contexto. A qualquer momento, existem inumeravelmente muitos estados em potencial. Em um determinado momento, no entanto, apenas um pode se tornar real, ou seja, aquele que é desencadeado por sua causa suficiente.
A situação não é diferente no caso de um animal. O jumento que agora está parado entre dois montes de feno pode, no momento seguinte, virar para a esquerda ou para a direita, ou pode saltar para o ar ou colocar a cabeça entre as pernas. Mas, também aqui, a causa suficiente deve primeiro estar presente se, dos possíveis modos de comportamento, um será realizado.
Analisemos um desses modos de comportamento. Vamos supor que o jumento virou-se para o monte à sua direita. Este virar-se pressupõe que certos músculos foram contraídos. A causa dessa contração muscular é a excitação dos nervos que levam a eles. A causa dessa excitação dos nervos é um estado do cérebro. Este estava em um estado de decisão. Mas como o cérebro veio a estar nessa condição? Vamos traçar um pouco mais anteriormente os estados do jumento.
Alguns momentos antes de ele se virar, seu cérebro ainda não estava constituído de modo a produzir a causa suficiente para a excitação dos nervos em questão e para a contração dos músculos; pois, caso contrário, o movimento teria ocorrido. O jumento ainda não tinha "decidido" se virar. Se ele então moveu-se em algum momento subsequente, seu cérebro deve ter se tornado, nesse meio tempo, constituído de modo a provocar a excitação dos nervos e o movimento dos músculos. A partir disso, o cérebro sofreu alguma mudança. A que causas deve essa mudança ser atribuída? À efetividade de uma impressão que, a partir do exterior, provocou uma sensação que surgiu internamente (por exemplo, a sensação da fome e a idéia do monte de feno à direita), por conjuntamente afetarem o cérebro, modificando o modo como ele é constituído, de modo tal que agora ele produz a causa suficiente para a excitação dos nervos e a contração dos músculos. O jumento agora "quer" virar para a direita; ele agora vira para a direita.
Portanto, assim como a posição e a constituição da pedra, por um lado, e a intensidade e a direção da força que atua sobre ela, por outro, necessariamente determinam o tipo e a duração do seu vôo, também o movimento do jumento – o voltar-se para o monte de feno à direita – é não menos necessariamente o resultado do modo como o cérebro do jumento e o estímulo estão constituídos em um determinado momento. Que o jumento tenha se virado para este monte específico foi determinado por algo trivial. Se o monte que o jumento não escolheu estivesse posicionado apenas um pouco diferente, ou se ele tivesse um cheiro diferente, ou se o fator subjetivo – o sentido do olfato do jumento ou seus órgãos visuais – tivesse se desenvolvido de algum modo diferente, então, assim se pode supor, o jumento teria se virado para a esquerda. Mas a causa não estava aí completa, e é por isso que o efeito não poderia ocorrer, enquanto em relação ao outro caso, onde a causa estava completa, o efeito não poderia deixar de aparecer.
Para o jumento, conseqüentemente, assim como para a pedra, há inumeravelmente muitos estados potenciais a qualquer momento: ele pode caminhar, correr, saltar, mover-se para a esquerda, para a direita ou para a frente. Mas somente aquele estado cuja causa suficiente esteja presente pode se tornar atual.
Ao mesmo tempo, há uma diferença entre o jumento e a pedra, e reside no fato de que o jumento se move porque quer se mover, enquanto a pedra se move porque é movida. Não negamos essa diferença. Há, afinal, um bom número de outras diferenças entre o jumento e a pedra. Não pretendemos, por qualquer meio, provar que essa dissimilaridade não exista. Não afirmamos que o jumento é uma pedra, mas apenas que cada movimento e cada ato de vontade do jumento têm causas, assim como o movimento da pedra. O jumento se move porque quer se mover. Mas que ele queira se mover em um determinado momento e numa direção específica é causalmente determinado.
Poderia ser que não houvesse causa suficiente para o querer se virar do jumento – que ele simplesmente quisesse se virar? Seu ato de vontade seria, então, um início absoluto. Uma suposição dessa natureza é contrariada pela experiência e pela validade universal da lei da causalidade. Pela experiência, uma vez que a observação nos ensina que, para todo ato de vontade, algumas causas foram os fatores determinantes. Pela validade universal da lei da causalidade, uma vez que, afinal, nada acontece em qualquer lugar do mundo sem uma causa suficiente. Por que, então, de todas as coisas, um ato de vontade de um jumento deveria vir a existir sem uma causa? Além disso, o estado do querer, o qual imediatamente precede a excitação dos nervos motores, não é diferente, em princípio, de outros estados – como a indiferença, a fadiga ou o cansaço. Alguém acreditaria que todos estes estados existem sem uma causa? E se não se acredita nisso, por que se consideraria que apenas o estado do querer deveria ocorrer sem uma causa suficiente?
É fácil explicar por que nos parece que o movimento da pedra é necessário, enquanto o ato de vontade do jumento não é. As causas que movem a pedra são, afinal de contas, externas e visíveis. Mas as causas do ato de vontade do jumento são internas e invisíveis; entre nós e o locus de sua eficácia encontra-se o crânio do jumento. Consideremos essa diferença um pouco mais de perto. A pedra repousa diante de nós como é constituída. Nós também podemos ver a força que atua sobre ela, e, a partir destes dois fatores, a constituição da pedra e a força, resulta igualmente visível o rolar da pedra. O caso do jumento é diferente. O estado de seu cérebro está escondido de nossa vista. E, embora o monte de feno seja visível, sua eficácia não é. É um processo interno. O monte de feno não entra em contato visível com o cérebro, mas age à distância. Assim, os fatores subjetivo e objetivo – o cérebro e o impacto que o monte de feno tem sobre ele – são invisíveis.
Suponhamos que pudéssemos descrever a alma do jumento em alto relevo, tendo em conta e tornando visíveis todos aqueles estados, atitudes e sentimentos que o caracterizam antes de ele se virar.
Suponhamos, ainda, que pudéssemos ver como uma imagem se destaca do monte de feno e, percorrendo um trajeto visível através do ar, invade o cérebro do jumento, e como ela produz nele uma mudança em consequência da qual certos nervos e músculos se movem. Suponhamos, finalmente, que pudéssemos repetir esse experimento muitas vezes de forma arbitrária, que, se voltássemos a alma do jumento para o estado precedente ao seu virar-se e deixássemos exatamente a mesma impressão agir sobre ele, devêssemos observar sempre o mesmo resultado. Então consideraríamos o virar à direita do jumento como necessário. Viríamos a perceber que o cérebro, constituído como estava naquele momento, tinha que reagir a tal impressão precisamente dessa maneira.
Na ausência deste experimento, tem-se a impressão de que o ato de vontade do jumento não foi causalmente determinado. Nós apenas não o vemos sendo causalmente determinado, e, conseqüentemente, acreditamos que tal determinação não tem lugar. O ato de vontade, diz-se, é a causa do virar-se, mas não é, ele mesmo, determinado; diz-se que é um início absoluto.
A opinião de que o ato de vontade do jumento não é causalmente determinado é sustentada não só por quem está de fora; o próprio jumento, tivesse ele o dom do raciocínio, a compartilharia. As causas de seu ato de vontade o iludiriam também, uma vez que no todo elas não se tornam conscientes de qualquer modo, e em parte passam através da consciência fugazmente, com a velocidade de um relâmpago. Se, por exemplo, o que fez pender a balança foi que ele estava mais próximo por um triz do monte de feno à direita, ou que este tinha um cheiro um pouquinho melhor, como deveria o jumento notar algo tão trivial, algo que tão totalmente falha em se impor sobre sua consciência?
Em certo sentido, é claro, o jumento está certo em pensar: "eu poderia ter me virado para a esquerda." Seu estado no momento, sua posição relativa ao monte de feno ou sua constituição precisavam meramente ter sido um pouco diferentes, e ele realmente teria virado para a esquerda. A afirmação “eu poderia ter agido de outra forma " é, portanto, verdadeira neste sentido: virar para a esquerda é um dos movimentos possíveis para mim (em contraste, por exemplo, com o movimento de voar); ele se encontra dentro da esfera de minhas possibilidades.
Chegamos ao mesmo resultado se tomamos a lei da inércia como ponto de partida. Ela prevê: todo objeto tende a permanecer em seu estado atual. Expresso negativamente, isto torna-se: sem uma causa suficiente, nenhum objeto pode passar de seu estado atual para outro. A pedra vai permanecer para sempre como está agora, não vai sofrer a menor mudança se quaisquer causas – tais como o clima ou uma força – não agirem sobre ela para acarretar uma mudança. O cérebro do jumento permanecerá no mesmo estado inalterado se quaisquer causas – a sensação de fome ou fadiga, por exemplo, ou impressões externas – não acarretarem uma mudança.
Se refletimos sobre a vida inteira do jumento sub specie necessitatis [sob a luz da necessidade], chegamos ao seguinte resultado. O jumento veio ao mundo com determinadas propriedades da mente e do corpo, a herança de seus ancestrais. Desde o dia de seu nascimento, impressões – dos companheiros com quem se divertiu ou se esforçou, sua alimentação, o clima – agiram sobre essas propriedades. Esses dois fatores, sua constituição inata e o modo como esta foi formada através das impressões da vida posterior, são a causa de todas as suas sensações, idéias e humores, e de todos os seus movimentos, mesmo os mais triviais. Se, por exemplo, ele ergue sua orelha esquerda e não a direita, isso é determinado por causas cujo histórico de desenvolvimento poderia ser traçado ad infinitum, e do mesmo modo quando ele fica de pé, vacilante, entre os dois montes de feno. E quando a ação, o ato de alimentar, toma o lugar da vacilação, isso também é determinado: a idéia do monte de feno agora atua sobre a mente do jumento, quando ele se tornou receptivo à idéia daquele feixe de feno em particular, de tal forma a produzir ações.
Palavras-chave: Behaviorismo radical; Radical behaviorism; Determinismo; Determinism; B. F. Skinner; Free will; Eu iniciador; Initiating self
Tradução: Marcus Vinícius Fonseca de Garcia
Link para a tradução em inglês:
http://web.nmsu.edu/~jvessel/Ree-D&MR.pdf
Link para o original em alemão:
http://www.gleichsatz.de/b-u-t/trad/moralt/ree-will1.html
http://web.nmsu.edu/~jvessel/Ree-D&MR.pdf
Link para o original em alemão:
http://www.gleichsatz.de/b-u-t/trad/moralt/ree-will1.html