Para abordar como relações de contigüidade podem influenciar tanto a gênese como modificações socialmente relevantes de comportamentos caracterizados como religiosos, podemos especular livremente sobre algumas possibilidades e também analisar registros históricos.
Um vulcão, num período temporalmente muito remoto, entra em erupção no território onde se situa a atual Indonésia. Uma cultura isolada de indivíduos humanos que vivem no território atualmente chamado México (imaginemos os astecas) sofre as consequências da erupção do outro lado do planeta: três anos consecutivos de invernos rigorosos devido à suspensão de partículas vulcânicas na atmosfera terrestre. Alterações no clima afetam globalmente o planeta, e a agricultura da cultura asteca é também afetada. A pouca disponibilidade de alimentos gera fome e, consequentemente, doenças. Muitas crianças morrem devido à desnutrição e doenças. Alguns cidadãos astecas com poder de decisão efetivo sobre comportamentos dos demais indivíduos (classe sacerdotal governante) observam uma proximidade temporal entre a alta taxa de mortalidade infantil e a gradual atenuação do clima, a qual é seguida pela retomada gradual da produção agrícola. Uma vez que a produção agrícola, após três rigorosos invernos, não é suficiente para alimentar a todos os cidadãos da cultura asteca, torna-se plausível para governantes com suficiente poder discricionário que o sacrifício de crianças é uma opção: acredita-se que trará atenuação do clima e melhora da produção agrícola, relação anteriormente observada, quando a morte crescente de crianças foi sucedida pela amenização gradual das intempéries climáticas.
Crianças são sacrificadas em rituais religiosamente caracterizados. O clima no território asteca melhora naturalmente após a atenuação dos efeitos globais da erupção vulcânica. O ritual de sacrifício infantil é mantido por gerações de indivíduos da cultura asteca após diminuições e aumentos intermitentes da produção agrícola, os quais necessariamente viriam a ocorrer, sendo ou não feitos sacrifícios. A possibilidade de controle da taxa de natalidade e de seus efeitos por meio de sacrifícios ritualísticos contribui para manter a prática cultural de sacrifício de crianças ao longo de gerações de indivíduos. Alguns questionam a validade efetiva do sacrifício ritualístico de seus filhos. São também mortos em rituais. Cidadãos que possuem mais recursos fazem doações substanciais aos sacerdotes e nem eles nem seus filhos são escolhidos para sacrifícios. A classe sacerdotal adquire mais e mais recursos e mantém uma lucrativa prática de extorsão. Indivíduos que afirmam que sacrifícios de crianças não mantêm relação alguma com a melhora do clima e das colheitas são condenados por heresia e também sacrificados.
É claro que tais especulações não devem ser levadas a sério. Afinal, são apenas especulações. No entanto, se tomamos registros históricos de períodos em que houve modificações sociais amplas e relevantes em comportamentos categorizados como religiosos, veremos que freqüentemente eventos ocorridos temporalmente próximos a essas modificações sociais influenciaram de modos decisivos sua ocorrência.
Segundo o historiador Eusebius de Cesaréia, o imperador romano Constantino I relata ter tido, em 312 D.C., uma visão no campo de batalha, justamente na tarde anterior a uma das batalhas decisivas que decidiriam sua ascensão rumo ao título de único imperador romano. Relata ter lido no céu a frase grega ἐν τούτῳ νίκα [Sob este sinal vencerás] e ter visto também, como a enfeitar o sol, uma cruz de fogo. Relata ter sonhado, na manhã seguinte a essa visão, com uma voz que lhe ordenava que um símbolo cristão bastante conhecido à época fosse pintado nos escudos dos soldados: a sobreposição das duas iniciais gregas da palavra Cristo – Χριστός – um X e um P sobrepostos. Ao se levantar, Constantino prontamente fez o que a voz lhe ordenara. Os soldados, que professavam o mitraísmo, religião então hegemônica, não protestaram, uma vez que também no mitraísmo era comum o uso da cruz como símbolo religioso. No evento que se tornou conhecido como a Batalha da Ponte Mílvia, Constantino e seus soldados saíram vitoriosos, massacrando os adversários. Após essa vitória, várias outras ocorreram com soldados empunhando escudos com o símbolo cristão. Os relatos sugerem que o evento ocorrido na Ponte Mílvia foi determinante para a conversão definitiva de Constantino à fé cristã, o que veio a ter desdobramentos também decisivos quanto à disseminação exponencial dessa fé, e quanto ao banimento, muitos anos mais tarde, das crenças pagãs sob o Império Romano.
Deve-se levar em conta também o fato de que Helena, mãe de Constantino, convertera-se à fé cristã ao ser abandonada por Constâncio, pai de Constantino, o que presumivelmente teve influência sobre a educação deste ainda na infância, contribuindo para sua predisposição à aceitação do cristianismo. Não se pretende aqui excluir a possibilidade de que contingências eminentemente políticas tenham levado Constantino a inventar todo o relato sobre a visão e o sonho ao historiador cristão Eusebius de Cesaréia, autor conhecido por seu propagandismo da fé cristã, ou mesmo que este último o tenha completamente inventado. No entanto, o fato de que isso possa realmente ter ocorrido parece apenas fortalecer a hipótese de que a suscetibilidade humana às contigüidades tem servido, ao longo da história, a interesses políticos, como ocorre ainda hoje. Seria digno de nota se soubéssemos que Constantino planejara cuidadosamente tornar público que seus sucessos em batalhas deveriam ser atribuídos à vontade divina e aos sinais pintados nos escudos após uma misteriosa revelação. Seria igualmente digno de nota se Eusebius de Cesaréia tivesse pretendido deliberadamente deixar tal registro, ainda que fictício, para a posteridade. Apontar relações de contigüidade e utilizá-las como táticas de amedrontamento e convencimento é algo que o animal humano possivelmente faz desde os primórdios da era em que adquiriu controle efetivo sobre os órgãos fonoarticulatórios. Esse uso deliberado de contiguidades, no entanto, só se tornaria possível caso os indivíduos que nele se engajassem já tivessem, eles próprios, sido amedrontados em relações anteriores de contigüidade.
Uma análise cuidadosa dos eventos – contingências e contigüidades – que levaram à adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano renderia muitas e muitas páginas. Situar os eventos que antecederam e sucederam mais imediatamente a Batalha da Ponte Mílvia pode nos fornecer apenas uma breve sugestão de como eventos históricos específicos e bem localizados, sob a forte influência de contigüidades, podem ser determinantes com relação a modificações amplas nos ambientes culturais humanos. É possível que o comportamento de Constantino I na tarde de 28 de outubro de 312 D.C., quando mandou que fossem pintados símbolos cristãos nos escudos de seus soldados, tenha modificado um longo encadeamento contingencial que perpassa agora meu comportamento de escrever este texto, e, logicamente, também o de quem o lê.