segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Resposta a um Jovem Discípulo de Lacan

Em uma discussão, um jovem lacaniano afirmava que procedimentos analítico-comportamentais de tratamento não levariam em conta a subjetividade de pessoas com desenvolvimento atípico. Espero que a resposta abaixo ajude a esclarecer esse equívoco, que costuma ser alardeado por aqueles que ignoram o que é a análise do comportamento.


Há pessoas com deficiências muito severas cujas relações com as pessoas com as quais conviveram e convivem podem contribuir de modo decisivo para que repertórios muito problemáticos sejam selecionados justamente em contextos ocorridos nessas relações.

Uma criança com uma deficiência severa que tenha tido problemas significativos ao adquirir repertório comunicativo, por exemplo, pode receber atenções imediatas ou alguma conseqüência que lhe seja agradável logo após agir de modos bastante extremos, como se agredir, gritar, jogar-se no chão etc.

Tais comportamentos extremos podem também ser consequenciados imediatamente com amenizações ou cessações de incômodos. Se a criança estiver sendo incomodada de alguma forma, pode se comportar de modos extremos, e, imediatamente, obter redução ou cessação do incômodo que esteja sendo produzido por outra pessoa.

O que nos acontece nos modifica em termos de sinapses nervosas, respostas imunológicas etc., sendo modificados, assim, também os modos como reagimos em contextos semelhantes que venham a nos ocorrer em nossa história.

Se tomamos uma vacina ou respiramos um vírus, nosso organismo passa a responder de modo diferente daquele como respondia anteriormente, mesmo que sequer cheguemos a descrever como ou quando tal modificação ocorreu.

De modo análogo ao exemplo de modificações pontuais ocorridas no chamado sistema imunológico, o que nos acontece está sempre modificando sinapses em nosso sistema nervoso, sendo modificados, assim, também os modos como respondemos aos contextos diversos de nossa história.

Não descrevemos tudo o que nos acontece e nos modifica. Não descrevemos como foram modificados os modos como respondemos ao mundo. No entanto, ainda que não sejamos capazes de descrever o que nos aconteceu e nos modificou, nosso responder é modificado. Se eu passar por você na rua amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará minha resposta de um modo diferente de como controlava antes.

Quem possui repertório descritivo pode descrever como se deram algumas dessas modificações. É muito comum que isso ocorra em terapia ou em sessões de psicanálise. Na medida em que narramos o que nos aconteceu, vamos tomando “consciência” de como viemos a nos tornar quem somos, como chegamos a pensar como pensamos, sentir como sentimos e agir como agimos.

Desse modo, podemos nos tornar capazes de fazer escolhas fundamentadas no histórico de modificações que nos ocorreram. Podemos nos tornar capazes de agir de modos muito diferentes de como vínhamos agindo, sem repetir escolhas que vinham nos trazendo sofrimento, escolhas estas cuja determinação, até então, era-nos muitas vezes totalmente inconsciente.

No caso de pessoas com deficiências severas que não adquiriram qualquer repertório descritivo, não podemos contar com descrições fornecidas pela própria pessoa. Devemos, então, basear o trabalho terapêutico em descrições fornecidas por terceiros e em observações diretas dos modos como ela age em contextos diversos de sua história. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao que chamaríamos de sua subjetividade.

A criança com um repertório de comportamentos extremos muitas vezes perde diversas oportunidades de aproveitar contextos de diversão, passeios, festas etc., pois pais e cuidadores geralmente evitam levá-la nessas ocasiões, por terem passado por dificuldades em contextos anteriores. A criança se comporta de modos extremos sob controle de conseqüências imediatas ocorridas em sua história. Ela não é capaz de descrever conseqüências que demoram a ocorrer, as quais muitas vezes lhe são muito desfavoráveis.

Compete a nós, nesses casos, descrevermos o que lhe aconteceu, o que lhe acontece e como os contextos atuais relacionam-se com seu responder atual. Essas descrições fornecerão bases para planejarmos o que lhe acontecerá para que sejam selecionados comportamentos que lhe propiciem maiores realizações e qualidade de vida.

Um comentário:

  1. É a ideia que eu publiquei recentemente em meu mural do Facebook:

    "Conclusões preliminares que venho tirando à medida que discuto com um filósofo e psicanalista:

    'Subjetividade' não é muito mais que a forma peculiar com que cada pessoa é modificada pelo e modifica o mundo. A dicotomia subjetivo/objetivo é um recurso didático -- que é importante... mas ganhamos mais ao falarmos de 'interações'."

    Muito bom o texto, Vinícius. Parabéns! Um abraço.

    ResponderExcluir