sábado, 21 de julho de 2012

Quando o uso de dispositivos como o SIBIS (Self-Injurious Behavior Inhibiting System) pode ser eticamente justificável?



Linscheid e colaboradores (1990) relataram o teste empírico de um dispositivo denominado SIBIS – Self-Injurious Behavior Inhibiting System [Sistema Inibidor de Comportamento Autolesivo], que aplicava uma estimulação elétrica leve e breve após cada ocorrência de SIB. Foram avaliados os efeitos do SIBIS no tratamento de cinco casos de SIB, selecionados dentre os mais severos em termos de magnitude e freqüência de autolesões, e que haviam se mostrado refratários a qualquer outra modalidade de tratamento. Uma das participantes estava prestes a perder a visão devido à cronicidade do SIB. Outro participante exibia cerca de três mil respostas autolesivas por dia. Segundo os autores, os efeitos foram imediatos, observando-se a quase completa eliminação do SIB. Tanto dados controlados como anedóticos dos follow ups de quatro dos cinco participantes sugeriram a continuidade dos benefícios e a ausência de efeitos colaterais prejudiciais. Deve ser mencionado que foram associados ao uso do SIBIS também o uso de procedimentos de reforçamento positivo. Segundo os autores, o SIBIS não deveria ser considerado como um substituto para a avaliação funcional ou ser empregado independentemente de programas de reforçamento positivo destinados a aumentar comportamentos apropriados. Os autores também ressaltaram expressamente que haveria a necessidade de rigorosa supervisão de profissionais habilitados.

Iwata (1988) relatou em detalhes os contextos do surgimento do SIBIS, bem como os motivos que o levaram a se associar ao projeto de desenvolvimento da tecnologia do dispositivo. O precursor ainda rudimentar do SIBIS havia sido concebido por Leslie e Moosa Grant, pais de uma garota com um transtorno autístico severo, na tentativa de obterem tratamento efetivo para o SIB intratável da filha, que se batia na cabeça e na face a ponto de produzir lacerações que atingiam estruturas ósseas e chegaram quase a mutilar sua orelha. Seus pais haviam tentado tratamentos com diversos profissionais, sem sucesso. Após anos de tentativas de tratamentos que se mostravam inefetivos, o casal Grant passou a conhecer as bases daquilo que era então denominado modificação do comportamento [behavior modification], e aprendeu que choques elétricos contingentes constituíam um modo efetivo de eliminar o SIB refratário a qualquer outra forma de tratamento. Construíram então um dispositivo equipado com um acelerômetro que ativava a estimulação elétrica após detectar automaticamente movimentos rápidos direcionados à cabeça. Apesar de pesado e pouco prático, o dispositivo eliminou rapidamente o SIB, que vinha ocorrendo de modo crônico havia quinze anos.

Compreensivelmente, o casal Grant se questionou por que vinha, por tantos anos, submetendo sua filha a repetidos tratamentos inefetivos, e por que dispositivos como o que eles mesmos haviam construído não poderiam lhes ter sido anteriormente disponibilizados. Começaram então a procurar por pessoas que pudessem construir um dispositivo melhor para sua filha, e também para outros, afetados por problemas semelhantes. Fizeram contato então com o Johns Hopkins Applied Physics Laboratory (APL), onde encontraram engenheiros que se dispuseram a construir um protótipo. Tais engenheiros perceberam que necessitariam do auxílio de médicos e de analistas do comportamento, e convidaram então Tom Linscheid, que, por sua vez, convidou Gary Pace, Michael Cataldo e Brian Iwata para participar do projeto.

Durante quatro anos, a equipe de engenheiros, médicos e analistas do comportamento trabalhou no desenvolvimento do dispositivo, que foi incrementado com contadores de respostas e estimulações fornecidas, um sinal sonoro que precedia a estimulação elétrica, a possibilidade de acionamento via controle remoto, e, o mais importante, a possibilidade de aplicação de esquemas de reforçamento positivo por meio de sinais sonoros após períodos especificados sem ocorrências de SIB. O uso de estimulação elétrica em procedimentos de punição é um tema bastante polêmico e há pouquíssima produção recente de analistas do comportamento a respeito. Referências mais atualizadas têm envolvido sempre o tratamento do SIB severo e refratário a modalidades não-aversivas de intervenção, e têm sido publicadas em periódicos não muito expressivos para o campo da análise do comportamento aplicada (ISRAEL e colaboradores, 2010; van OORSOUW e colaboradores, 2008; SALVY e colaboradores, 2004; LINSCHEID e REICHENBACH, 2002).

Ainda que dispositivos como o SIBIS se mostrem bastante efetivos no tratamento de casos severos de SIB mantidos por reforçamento automático e refratários a todas as outras modalidades de tratamento disponíveis, é importante que sua utilização seja normatizada com base em preceitos éticos e científicos. Seria impensável conceber a utilização de dispositivos como o SIBIS no tratamento do SIB severo exibido, por exemplo, por uma pessoa acometida por algum problema médico doloroso que estivesse relacionado a uma frequência aumentada do SIB, como nos casos de otite média ou de outras condições médicas que envolvem dor.

Breau e colaboradores (2003) apontaram relações entre a dor e o SIB em crianças não-verbais com deficiência severa, e sugeriram que crianças acometidas por problemas médicos associados a dor crônica podem exibir topografias de SIB diferentes daquelas exibidas por crianças sem dor. Em casos de SIB mantido por reforçamento negativo automático, o uso de dispositivos como o SIBIS poderia suprimir as únicas maneiras encontradas pela pessoa para produzir algum alívio da dor ou do desconforto. Por mais que tais maneiras encontradas fossem autolesivas, seria eticamente muito questionável suprimir os únicos comportamentos capazes de trazer algum alívio, sem oferecer qualquer outra possibilidade nesse sentido, e, o mais importante, sem oferecer tratamentos de fato resolutivos para os problemas orgânicos relacionados à etiologia do desconforto ou da dor. Tal argumentação pode sugerir que o uso de dispositivos como o SIBIS em casos de SIB mantido por reforçamento negativo automático deveria ser contraindicado.

Em casos de SIB mantido por reforçamento positivo automático, as topografias observadas podem ser diferentes daquelas observadas nos casos de SIB mantido por reforçamento negativo automático, o que ocorre também em se tratando da observação de comportamentos precursores de SIB nos dois casos. Comportamentos precursores são comportamentos cujas ocorrências podem ser frequentemente observadas imediatamente antes da ocorrência de um comportamento que seja alvo de observação (SMITH e CHURCHILL, 2002). Foi apontado recentemente, em uma revisão de Fahmie e Iwata (2011) sobre comportamentos precursores de SIB, que apenas em um sujeito, dentre 34 da amostra total, identificou-se um precursor de SIB mantido por reforçamento automático. O estudo identificou, no entanto, diversas funções e topografias de precursores de SIB socialmente mantido. Tais resultados sugerem a necessidade de estudos mais detalhados que sejam focados na descrição topográfica e funcional de precursores do SIB mantido por reforçamento automático. De acordo com relatos anedóticos fornecidos por familiares, professores e profissionais de reabilitação, enquanto no SIB mantido por reforçamento negativo automático, os comportamentos precursores geralmente são expressões faciais de dor ou de desconforto, nos casos de SIB mantido por reforçamento positivo automático, comportamentos precursores podem incluir expressões faciais tranquilas ou mesmo sorrisos, os quais inclusive podem continuar ocorrendo durante o período em que a pessoa permanece engajada em SIB. Por mais que tais casos sejam geralmente incluídos em uma mesma categoria, denominada 'SIB mantido por reforçamento automático', é plausível supor que se trate de casos bem diferentes, e que deveriam ser tratados de modos também diferentes.

Em alguns casos de SIB mantido por reforçamento positivo automático, considera-se a hipótese de que alterações neurobiológicas possam ser responsáveis por sensibilidades anômalas a autoestimulações lesivas. A hipótese do papel de opióides endógenos - ou Beta-endorfinas - envolveria tais alterações (Cataldo e Harris, 1982; Ryan e colaboradores, 1989; Benjamin e colaboradores, 1995). Nesses casos, a pessoa, ao se estimular de modo autolesivo, produziria uma resposta sensorial que contribuiria para aumentar as chances de ela voltar a se estimular do mesmo modo. É plausível supor que o que essa pessoa sente em resposta à autoestimulação lesiva é algo bem diferente daquilo que ela deveria sentir caso seu organismo fosse um organismo neurobiologicamente típico, com uma sensibilidade típica. Se dispositivos como o SIBIS podem acrescentar, imediatamente contingente à autoestimulação lesiva, uma estimulação aversiva que produz uma resposta sensorial funcionalmente equivalente à resposta que de fato deveria ocorrer em um organismo típico, é plausível supor que a intervenção se justifique eticamente, por representar uma possibilidade de adaptação ambiental que permitiria a amenização ou "correção" de um grave problema sensorial.



Referências:


- Linscheid, T. R., Iwata, B. A., Ricketts, R. W., Williams, D. E., & Griffin, J. C. (1990). Clinical evaluation of the self-injurious behavior inhibiting system (SIBIS). Journal of Applied Behavior Analysis, 23, 53-78.

- Iwata, B. A. (1988). The development and adoption of controversial default technologies. Behavior Analyst, 11, 149–157.

- Israel, M.L., Blenkush, N.A., von Heyn, R.E., & Sands, C.C. (2010). Seven Case Studies of Individuals Expelled from Positive-Only Programs. The Journal of Behavior Analysis of Offender and Victim Treatment and Prevention, 2 (1), 20-36

- van Oorsouw, W.M.W.J., Israel, M. L., von Heyn, R. E., Duker, P. C. (2008). Side effects of contingent shock treatment. Research in Developmental Disabilities, , 29(6), 513-523.

- Salvy, S., Mulick, J.A, Butter, E., Bartlett, R.K. & Linscheid, T.R. (2004) Contingent electric shock (SIBIS) and a conditioned punisher eliminate severe head banging in a preschool child. Behavioral Interventions, 19, 59-72.

- Linscheid, T.R. & Reichenbach, H. (2002). Multiple factors in the long-term effectiveness of contingent electric shock treatment for self-injurious behavior: a case example. Research in Developmental Disabilities, 23, 161-177.
- Smith, R. G., & Churchill, R. M. (2002). Identification of environmental determinants of behavior disorders through functional analysis of precursor behaviors. Journal of Applied Behavior Analysis, 35, 125-136.

- Cataldo, M. F., & Harris, J. (1982). The biological basis for self-injury in the mentally retarded. Analysis and Intervention in Developmental Disabilities, 2, 21-39.

- Ryan E. P.; Helsel  W. J.; Lubetsky, M. J.; Miewald, B. K.; Hersen, M.; Bridge, J. (1989). Use of naltrexone in reducing self-injurious behavior: A single case analysis Journal of the multihandicapped person, 2 (4), pg. 295-309.

- Benjamin, S.; Seek, A.; Tresise, L.; Price, E.; Gagnon, M. (1995). Case study: paradoxical response to naltrexone treatment of self-injurious behavior. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry, Feb; 34(2):238-42.

- Fahmie,T.A. & Iwata, B. A. (2011). Topographical and functional properties of precursors to severe problem behavior. Journal of Applied Behavior Analysis, 44, 993-997.






6 comentários:

  1. Ótimo texto Vinicius! Acho que o grande problema da estimulação aversiva nestes casos é que quem é contra provavelmente nunca viu o que alguém com comportamento auto-lesivo pode fazer a si próprio.
    Parabéns!

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  2. Obrigado, Marcela! Concordo com sua observação.

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  3. Fiquei com uma dúvida neste trecho: "Tanto dados controlados como anedóticos dos follow ups de quatro dos cinco participantes sugeriram a continuidade dos benefícios e a ausência de efeitos colaterais prejudiciais."

    "Dados anedóticos" são aqueles dados que provêm de relatos informais dos observadores do sujeito, como familiares e tal, ou apenas dados que não foram coletados com rigor pelos observadores em geral?

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  4. Olá anônimo,

    Colo aqui o link para o artigo na íntegra. Nele, você terá acesso às informações sobre a coleta de dados nos follow ups. Houve coleta de dados sistemática, por meio do registro da frequência de respostas em condições controladas, e também anedóticas, por meio de entrevistas com pais e professores. Recomendo bastante que leia o artigo inteiro, mas, se forem do seu interesse apenas os dados dos follow ups, há tópicos denominados "follow up" para cada um dos participantes do estudo.

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  5. Olá. Como posso ter acesso a monografia?
    Obrigado

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  6. Me envie um email: marcusvfg@yahoo.com.br.

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